sexta-feira, dezembro 26, 2008

O principezinho


Wanderers by the Sea - Odd Nerdrum


Foi então que apareceu a raposa.
- Olá, bom dia! – disse a raposa.
- Olá, bom dia! – respondeu educadamente o principezinho, que se virou para trás mas não viu ninguém.
- Estou aqui, debaixo da macieira – disse a voz.
- Quem és tu? – perguntou o principezinho – És bem bonita…
- Sou uma raposa – disse a raposa.
- Anda brincar comigo – pediu-lhe o principezinho. – Estou tão triste…
- Não posso ir brincar contigo – disse a raposa. – Ainda ninguém me cativou…
- Ah! Então, desculpa! – disse o principezinho.
Mas pôs-se a pensar, a pensar, e acabou por perguntar:
- «Cativar» quer dizer o quê?
- Vê-se logo que não és de cá – disse a raposa. – De que andas tu à procura?
- Ando à procura dos homens – disse o principezinho. - «Cativar» quer dizer o quê?
- Os homens têm espingardas e passam o tempo a caçar – disse a raposa. – É uma grande maçada! E também fazem criação de galinhas. Aliás, na minha opinião, é o único interesse deles. Andas à procura de galinhas?
- Não – disse o principezinho. – Ando à procura de amigos. «Cativar» quer dizer o quê?
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. – Quer dizer «criar laços»…
- Criar laços?
- Sim, laços – disse a raposa. – Ora vê: por enquanto tu não és para mim senão um rapazinho perfeitamente igual a cem mil outros rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto eu não sou para ti senão uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativares, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E eu também passo a ser única no mundo para ti…
- Parece-me que estou a perceber – disse o principezinho. – Sabes, há uma certa flor… tenho a impressão que ela me cativou…
- É bem possível – disse a raposa. – Vê-se cada coisa cá na Terra…
- Oh! Mas não é na Terra! – disse o principezinho.
A raposa pareceu muito intrigada.
- Então, é noutro planeta?
- É.
- E nesse planeta há caçadores?
- Não.
- Começo a achar-lhe alguma graça… E galinhas?
- Não.
- Não há bela sem senão… - suspirou a raposa.
Mas voltou a insistir na mesma ideia:
- Tenho uma vida terrivelmente monótona. Eu caço galinhas e os homens caçam-me a mim. As galinhas são todas parecidas umas com as outras e os homens são todos parecidos uns com os outros. Por isso, às vezes, aborreço-me muito. Mas, se tu me cativares, a minha vida fica cheia de sol. Fico a conhecer uns passos diferentes de todos os outros passos. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus hão-de chamar-me para fora da toca, como uma música. E depois, repara! Estás a ver aqueles campos de trigo ali adiante? Eu não gosto de pão e, por isso, o trigo não me serve para nada. Os campos de trigo não me fazem lembrar nada. E é uma triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Então, quando tu me tiveres cativado, vai ser maravilhoso! O trigo é dourado e há-de fazer-me lembrar de ti. E hei-de gostar do som do vento a bater no trigo…
A raposa calou-se e ficou a olhar para o principezinho durante muito tempo.
- Se fazes favor… Cativa-me! – acabou finalmente por pedir.
- Eu bem gostava – respondeu o principezinho, - mas não tenho muito tempo. Tenho amigos para descobrir e uma data de coisas para conhecer…
- Só conhecemos o que cativamos – disse a raposa. – Os homens deixaram de ter tempo para conhecer o que quer que seja. Compram as coisas já feitas aos vendedores. Mas como não há vendedores de amigos, os homens deixaram de ter amigos. Se queres um amigo, cativa-me!
- E tenho de fazer o quê? – disse o principezinho.
- Tens que ter muita paciência. Primeiro, sentas-te longe de mim, assim, na relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas podes-te sentar cada dia um bocadinho mais perto…
O principezinho voltou no dia seguinte.
- Era melhor teres vindo à mesma hora – disse a raposa. – Por exemplo, se vieres às quatro horas, às três, já eu começo a estar feliz. E quanto mais perto for da hora, mais feliz me sinto. Às quatro em ponto hei-de estar toda agitada e toda inquieta: fico a conhecer o preço da felicidade! Mas se chegares a uma hora qualquer, eu nunca vou saber a que horas hei-de começar a arranjar o meu coração, a vesti-lo, a pô-lo bonito… Precisamos de rituais.
- O que é um ritual? – disse o principezinho.
- Também é uma coisa de que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. – É o que torna um dia diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas. Por exemplo, os meus caçadores têm um ritual. À quinta-feira, vão dançar com as raparigas da aldeia. Por isso, a quinta-feira é um dia maravilhoso. Eu posso ir passear às vinhas. Se os caçadores fossem dançar num dia qualquer, os dias eram todos iguais uns aos outros e eu nunca tinha férias.
E o principezinho cativou a raposa. Mas quando se aproximou a hora da despedida:
- Ai! – suspirou a raposa – Ai que me vou pôr a chorar…
- A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu não te desejava mal nenhum, mas tu pediste para eu te cativar…
- Pois pedi – disse a raposa-
- Mas agora vais-te pôr a chorar! – disse o principezinho.
- Pois vou – disse a raposa.
- Então não ganhaste nada com isso!
- Ai ganhei, sim, senhor! – disse a raposa. – Por causa da cor do trigo…
E acrescentou:
- Anda, vai ver as rosas outra vez. Vais entender que a tua é única no mundo. Quando vieres ter comigo, dou-te um presente de despedida: conto-te um segredo.


in “O principezinho” - Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Catarina ou o sabor da maçã

Kees van Dongen - Le doigt sur la joue


A gente, às vezes, acordava de noite e conversávamos. Na noite de Sábado para Domingo acordámos às seis e meia da manhã. Ela disse que lhe apetecia fazer uma coisa fora de propósito. Eu propus irmos ver nascer o Sol ao alto da Peninha e ela achou óptimo. Vestimo-nos à pressa. Eu enfiei por cima de tudo uma camisola grossa de lã, metemo-nos no carro e lá fomos pela serra acima. A luz do dia começava a distinguir o contorno dos montes mas quando lá chegámos acima o sol não tinha nascido ainda, Ficámos no carro, à espera, de mão dada até que ela se aproximou mais de mim e me deu dois daqueles beijos que ela sabia e de que eu estava a tomar o gosto. A certa altura lá vinha o Sol a espreitar no fundo do horizonte. Perto, nem viv’alma. Nem um cão ladrava. Era só o pequeno coro dos pássaros a acordarem-se uns aos outros. O belo disco de luz alaranjada ia-se erguendo e nós ficámos a olhar para o Sol e para os raios que ele ia pondo na encosta da serra. Ficámos quietos e silenciosos como numa missa e aquele ritual diário, mas que a gente raras vezes tinha ocasião de ver, transmitia-nos uma grande serenidade e uma imensa emoção. Senti a mão dela a apertar mais a minha. Ela disse:
- O mundo é tão bonito!
Eu comentei:
- O que faz isto bonito está dentro de nós. Muita gente fica indiferente a este Sol a nascer e quem tem ódio no coração fica lá com o ódio.
A Catarina estava com um brilho no olhar e parecia querer aspirar com as narinas tudo o que se estava a passar. Deixou cair uma frase como se fosse uma resposta ao que eu lhe tinha dito:
- Talvez fosse possível ensinar as pessoas a ver nascer o Sol…
Eu perguntei:
- E a ti, quem te ensinou?
- Tudo me ensinou: o meu pai. A minha mãe, o mundo em que eu nasci… Tudo mais ou menos me preparou para coisas destas. Viver é capaz de ser uma educação de sentimentos.
- Sim. É capaz de ser, só que nós temos uma imensa capacidade de sermos infiéis às coisas para que somos feitos.
O Sol tinha acabado de nascer e o dia prometia estar bonito. Viemos para o carro e descemos a Colares para a nossa casa. Fomos dormir mas, de cada vez que a gente entrava na cama, a Catarina tinha que fazer os seus rituais de carícias que sempre acabavam num amor bem soletrado. Como tenho dito, todo este lado sensual da Catarina era uma surpresa para mim. Naquele dia acabámos por cair um para cada lado, sonolentos e cansados, mas quase parecia que, entre o sono, ela pensava no meu corpo e procurava-o com as mãos, mesmo a dormitar.
Quando acordei, o Sol que tínhamos visto nascer, já ia alto e forte. Batia nas janelas e as frinchas deixavam passar pequenos raios de luz que iam bater no chão e na cómoda. Ela continuava a dormir ao meu lado e a mim deu-me para pensar nesta aventura inesperada que completamente me enchia. Gostaria de explicar que, para mim, há uma diferença entre o estar apaixonado e o viver com intensidade uma vibração amorosa. A paixão é cega e o apaixonado não consegue aperceber-se da realidade em que está metido. Eu estava lúcido, até porque a tal outra metade de mim não parava de nos observar e reflectir. Mas a verdade é que eu me sentia preso à Catarina com uma intensidade que não contava já ser capaz de viver e os meus quarenta e muitos anos estavam a desvendar-me forças e estados de alma que eu já não esperava viver.
Levantei-me, desci para a cozinha, tomei o pequeno-almoço e fiz o que se faz nestas ocasiões: preparei café e torradas, pus tudo num tabuleiro e fui levar-lho ao quarto. Ela já estava acordada e riu-se para mim, agradecida. Eu disse:
- Trago-lhe o café e as torradas. Acho que todos os namorados fazem esta rábula nos primeiros dias… É uma espécie de costumes e hábitos dos humanos quando se amam…
-São bem bons estes costumes dos nativos – disse ela, sentando-se na cama. Ficava bem assim, despenteada com o peito a sair dos lençóis. Até a comer a torrada a boca ficava sensual e provocante e eu olhava-a com a sensação de que aquela mulher não tinha nada que ver com a menina que conheci e com quem eu tinha aquelas conversas sobre literatura e estados de alma.


in "Catarina ou o sabor da maçã" - António Alçada Baptista


quarta-feira, novembro 19, 2008

O último voo do flamingo


Dancing Flamingo - Peter Kurdulija


Então, ela contou. Eu repetia palavra por palavra, decalcando sobre a voz cansada dela. Rezava: havia um lugar onde o tempo não tinha inventado a noite. Era sempre dia. Até que, certa vez, o flamingo disse:
- Hoje farei meu último voo!
As aves, desavisadas, murcharam. Tristes, contudo, não choraram. Tristeza de pássaro não inventou lágrima. Dizem: lágrima dos pássaros se guarda lá onde fica a chuva que nunca cai.
Ao aviso do flamingo, todas as aves se juntaram. Haveria uma assembleia para se conversar o assunto. Enquanto o flamingo não chegava, se escutavam os pios em rodopios. Se acreditava em tais ditos? Podia-se e não. Fosse ou não fosse, todos se demandavam:
- Mas vai voar para onde?
- Para um sítio onde não há nenhum lugar.
O pernalta, enfim, chegou e explicou – que havia dois céus, um de cá, voável, e um outro, o céu das estrelas, inviável para voação. Ele queria passar essa fronteira.
- Porquê essa viagem tão sem regresso?
O flamingo desvalorizava seu feito:
- Ora aquilo é longe, mas não é distante.
Depois ele foi internando-se nas árvores sombrosas do mangal. Demorou. Só apareceu quando a paciência dos outros já envelhecia. Os bichos de asa se concentraram na clareira do pântano. E todos olharam o flamingo como se descobrissem, apenas então, a sua total beleza. Vinha altivo, todo por cima da sua altura. Os outros, em fila, se despediam. Um ainda pediu que ele desfizesse o anúncio.
- Por favor, não vá!
- Tenho que ir!
A avestruz se interpôs e lhe disse:
- Veja, eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.
- Não posso, me cansei de viver num só corpo. E falou. Queria ir lá onde não há sombra, nem mapa. Lá onde tudo é luz. Mas nunca chega a ser dia. Nesse outro mundo ele iria dormir, dormir como um deserto, esquecer que sabia voar, ignorar a arte de pousar sobre a terra.
- Não quero pousar mais. Só repousar.
E olhou para cima. O céu parecia baixo, rasteiro. O azul desse céu era tão intenso que se vertia líquido, nos olhos dos bichos.
Então, o flamingo se lançou, arco e flecha se crisparam em seu corpo. E ei-lo, eleito, elegante, se despindo do peso. Assim, visto em voo, dir-se-ia que o céu se vertebrara e a nuvem, adiante, não era senão alma de passarinho. Dir-se-ia mais: que era a própria luz que voava. E o pássaro ia desfolhando, asa em asa, as transparentes páginas do céu. Mais um bater de plumas e, de repente, a todos pareceu que o horizonte se vermelhava. Transitava de azul para tons escuros, roxos e liliáceos. Tudo se passando como se um incêndio. Nascia, assim, o primeiro poente. Quando o flamingo se extinguiu, a noite se estreou naquela terra.
Era o ponto final. No escurecer, a voz de minha mãe se desvaneceu. Olhei o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.


in “O último voo do flamingo” – Mia Couto


quarta-feira, outubro 29, 2008

O vendedor de passados


Adão e Eva - Edvard Munch

Fausto Bendito Ventura fez-se alfarrabista por distracção. Orgulhava-se de nunca ter trabalhado na vida. Saía de manhã cedo a passear pela baixa, malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. Se acaso se cruzava com alguma senhora do seu tempo, dedicava-lhe a luz de um sorriso galante. Soprava: bom dia, poesia. Atirava piropos apimentados às empregadas dos bares. Conta-se (contou-me Félix) que um dia um invejoso o provocou:
«Afinal, o que faz o senhor nos dias úteis?»
A réplica de Fausto Bendito, todos os meus dias são inúteis, cavalheiro, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em iludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da independência, ainda não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio, e o portão estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas para ter livre acesso aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao acaso no forte soalho do salão.

Partilho com Félix Ventura um amor (no meu caso sem esperança) pelas palavras antigas. A Félix Ventura quem o educou neste sentimento foi, primeiro, o pai, Fausto Bendito, e a seguir um velho professor, dos primeiros anos do liceu, sujeito de modos melancólicos, alto, e de tal forma delgado que parecia caminhar sempre de perfil, como uma gravura egípcia. Gaspar, assim se chamava o professor, comovia-se com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los. Usava-os com ostentação e persistência, o que consternava uns e desconcertava outros. Creio que triunfou. Os seus alunos começaram por utilizar esses vocábulos, primeiro por troça, e a seguir como uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da restante juventude. Hoje, assegurou-me Félix, são ainda capazes de se reconhecerem uns aos outros, mesmo quando nunca se viram antes, às primeiras palavras.
«Ainda tremo de cada vez que ouço alguém dizer edredom, um galicismo hediondo, em vez de frouxel, que a mim me parece, e estou certo que você concordará, palavra muito bela e muito nobre. Mas já me conformei com sutiã. Estrofião tem uma outra dignidade histórica. Soa, todavia, um pouco estranho – não concorda?»

in "O vendedor de passados" – José Eduardo Agualusa

quarta-feira, outubro 15, 2008

As mulheres do meu Pai


Embondeiro - Vicente


Alguém veio – um decrépito Volkswagen com dois militares – enquanto Faustino Manso cantava Luanda ao Crepúsculo. O militar que ia ao volante era alto e desengonçado; o outro, baixo e roliço, com um farto bigode em forma de vassoura. Dom Quixote saiu do carro e espreguiçou-se. Sancho Pança saiu também, preguiçosamente, fez menção de arrumar a enorme barriga dentro das calças, desistiu, aproximou-se do embondeiro e urinou com fragor. Dom Quixote admoestou-o:
- Capitão, olhe a menina!
Estendeu-me a mão:
- Acidente?
Expliquei-lhe o que tinha acontecido. Dom Quixote abanou a comprida cabeça descarnada, pesaroso.
- Não podem ficar aqui, assim em meio a tantíssima noite. Não sobretudo a menina, uma moça tão delicada. Estamos em território hostil. A guerra acabou, sim, mas há ainda por esses matos adentro uma meia dúzia de bandidos despardalados. Em noventa e nove, sabe?, eu quase morri aqui. Esse embondeiro foi que me salvou.
- Ia morrendo numa emboscada?
- Não senhora. Foi a minha esposa que quase me matou…
- A sua esposa?
- Afirmativo. Eu estava a namorar, no interior da viatura, com uma moça de Benguela chamada Mil Flores, uma mulata clara… assim como a menina… Estava eu já, como dizer?, totalmente operacional, quando a minha esposa apareceu. Quem nos denunciou foi, segundo apurei mais tarde, uma outra namorada minha, muito afligida de ciúmes, essa chamada Anunciação. Maria Rita, a minha esposa, apareceu armada com uma catana. Não a vi chegar. Só dei por ela no instante em que partiu o vidro do lado do condutor. Mil Flores abriu a porta do outro lado e fugiu a correr, em toda a sua nudez, que era linda de se ver, em direcção ao Lobito. Deus fez-me assim como vê, magro e ágil, tipo cabrito, mas estou velho, a minha mulher é muito mais jovem, tem mais fôlego, era uma questão de tempo até me apanhar. E se me apanhasse, zás!, lá ficava eu sem armamento, então subi no embondeiro.
- Não é possível! Como conseguiu?
- Como voam os gatos?
- Os gatos não voam!
- Não voam lá na Europa, menina. Aqui voam! Ponha um galgo atrás de um gato a ver se ele não voa. Um gato aperreado trepa em qualquer árvore, mesmo que seja eucalipto. Em dependendo do galgo, galga inclusive uma parede lisa. O certo é que voei, subi. Fiquei lá em cima, nu em pêlo, mais em pele do que em pêlo, aliás, que pêlos não tenho muitos, até que caiu a noite e Maria Rita se cansou e foi embora.


in “As mulheres do meu Pai” – José Eduardo Agualusa



sábado, setembro 20, 2008

O outro pé da sereia

Auguste Renoir - La Promenade


O goês dizia a verdade. Nos últimos meses ele e a esposa já não davam asas aos lençóis. Todas as tardes, o alfaiate se demorava na penumbra da loja, cumprindo horas extraordinárias. Há muito que não havia trabalho. De repente, porém, chegou a inesperada encomenda: fardamentos para os régulos.
A esposa fazia de modelo para que o marido confirmasse as medidas. Jesustino metia uma dúzia de alfinetes na boca enquanto, de joelhos, marcava a dobra das calças. Um dia, receava a mulher, ele acabaria engolindo um alfinete. Na versão dele, isso já tinha acontecido. O malfadado alfinete ainda lhe viajava pelo corpo, pontiagudizando-lhe as entranhas. Sabia lá onde, em cada dia, o alfinete lhe ia parar?
Já lá iam os tempos em que Jesustino Rodrigues, inteiramente despido, pedia à esposa que lhe inspeccionasse as magras carnes. Ela fazia de conta que acreditava no pretexto e as suas mãos, com competente doçura, lhe percorriam recantos e saliências do corpo. Três vezes por semana, a cuidadosa inspecção ocorria. Há meses que as mãos de Constança se haviam desocupado.
Naquela noite, o alfaiate cheirou os braços e as mãos para confirmar que não estava marcado pelos cheiros de Luzmina. Tranquilizou-se: afinal, a irmã tinha um perfume gémeo, indistinto do dele. Constança não poderia nunca desconfiar. Foi directo à casa de banho e ficou-se olhando no espelho: o remorso lhe escurecia o rosto. Quando se deitou foi surpreendido pela pergunta da esposa:
- Por que se demorou tanto na casa de banho?
- Demorei, Eu? Despachei-me enquanto o diabo lhe esfregava o olho!
- Esteve a cortar a unhas, eu bem escutei.
A mandioca azedava. Constança desconfiava do marido sempre que ele se preocupava em cortar as unhas dos pés. A sua lógica era simples: só cuida das partes escondidas quem as vai mostrar a alguém.
- Diga-se de paisagem, Constança: eu estava me bonitando para si.
- Para mim?
- É que hoje eu queria que você me procurasse o alfinete!
Ela se recusou. Há tempos esquecidos que Jesustino não se preocupava com risco de ser alfinetado. Por que razão ele insistia agora no velho e esquecido pedido?
- É que tenho receio que o alfinete tenha ido parar lá.
- Lá, onde?, inquiriu a mulher.
- Lá, repetia Jesustino e apontou com o queixo o muito baixo-ventre.


in “O outro pé da sereia” – Mia Couto



terça-feira, setembro 02, 2008

O Contrabaixo


Jan Verkolje - Elegant Couple


E é então, que nesse instante sublime em que a Ópera se transforma em universo e o instante se transmuta em instante original do universo, bem lá no fundo, onde tudo é espera viva, se suspende a respiração, e já as três filhas do Reno aguardam de pé, por detrás do pano corrido, como que pregadas ao chão, … nesse preciso instante, vindo da última fila da orquestra, onde estão os contrabaixos, ecoa o grito de um coração apaixonado…
Ele grita.
… SARAH!!!
Um efeito colossal! … No dia seguinte os jornais trazem a notícia de que eu saio a voar da Orquestra Nacional, vou ter a casa dela com um ramo de flores na mão, ela abre a porta, olha para mim pela primeira vez, eu em frente dela, como um herói e digo-lhe: “sou o homem que a comprometeu, estou apaixonado por si”, caímos nos braços um do outro, união, bem-aventurança, felicidade suprema, o mundo afunda-se aos nossos pés. Ámen. – É evidente que tentei tirar a Sarah da cabeça. Se calhar, ela não é nada de especial; como pessoa passa despercebida; espiritualmente um desespero autêntico; sem a estrutura adequada para um homem da minha grandeza…
Só que depois, cada vez que temos ensaio, oiço a voz dela, aquela voz, aquele órgão divino. … Querem saber uma coisa, uma bonita voz só o é se for espiritual, a mulher em si pode ser uma parva, acho eu, a música tem destas coisas medonhas. E é nisso que está o erotismo. Um campo a que nenhum ser humano pode escapar. Diria pois que, quando ela canta, a Sarah, é como se me entrasse pela carne dentro, é uma coisa quase sexual… mas, por amor de Deus, agora não me interpretem mal. Às vezes acordo a meio da noite… a gritar. Grito, porque no sonho a oiço cantar, meu Deus! Ainda bem que o quarto está isolado à prova de som. Fico alagado em suor e, depois, volto a adormecer… e acordo de novo com os meus próprios gritos. E é assim toda a noite: ela canta, eu aos gritos, adormecendo, ela a cantar, eu aos gritos, adormecendo, etc. A sexualidade é isto.
Mas às vezes, e já que estamos a falar deste assunto, ela também me aparece durante o dia. Só na minha imaginação, é evidente. Eu… isto agora pode parecer esquisito… nessas ocasiões penso que ela se encontraria na minha frente, muito colada a mim, como agora o contrabaixo. E que eu não era capaz de me conter e que tinha de a abraçar… assim… e com a outra mão assim… tal como com o arco… por trás do rabo dela… ou ao contrário, assim, como acontece com o contrabaixo de trás para a frente, e tocando-lhe os peitos com a mão esquerda, como no acorde de terceira na corda de Sol… a solo… …agora é um pouco difícil de executar… e pela direita, envolvendo-a de fora, com o arco, assim, na parte inferior, e depois assim e assim e assim e…
Ele agarra-se ao contrabaixo e executa acordes selvagens, depois põe-no de parte, senta-se exausto na poltrona e serve-se de cerveja.


In “O Contrabaixo” – Patrick Suskind

terça-feira, agosto 05, 2008

O pássaro de penas douradas e a bela do arco-íris


Sir John Everett Millais - The Blind Girl

No alto do penhasco o pássaro de penas douradas perscruta o longe. Observa, compenetrado, todo o espaço que sua vista alcança. Sempre preparado para partir, procura por sinais do arco-íris. Desde que desvendou o seu segredo prometeu a si mesmo que assim que ele surgisse, formoso e pleno, voaria para junto dela. A sua bela do arco-íris. Seriam para ela os seus mais primorosos trinados, procurando-lhe sorrisos ausentes. Tudo isto porque no seu olhar se revelaram os mistérios do arco-íris. Descobriu que ele aí vivia, iluminando-a em luzentes cores. E só quando algumas lágrimas brotavam de seus olhos é que ele, renitente, deslizava também pela sua face, renascendo distante, onde desponta o horizonte. Nesse momento o pássaro de penas douradas chorou porque desejou o impossível. Por amor queria ser homem. Mas pela noite, na hora dos sonhos, ele alcança algum alívio no seu desassossego. Aí tudo é possível. Um sorriso aflora no seu bico, agora boca. Uma vez mais as amorosas palavras são pensadas, suspirando serem ditas. Ele, homem. Ela, a bela:
Um dia sussurrar-te-ei poemas de amor, minha bela do arco-íris. Quem nos esqueceu será esquecido. Seremos Amor e Alma, inventando somas e multiplicações. No bosque de faias cessará o lento caminhar das sombras. O alegre gorjear dos pássaros em suspenso. Estaremos isolados em nós. Unidos no amparo de tuas luminosas cores. No regaço encontrarei tua delicada mão com a minha. E assim, sentindo teu calor sendo também meu, aproximarei lentamente o meu rosto ao teu. Por um momento teus olhos encontrarão meus lábios. Depois, fechando-os, ficarás esperando os beijos que te darei. Entregue. E a quinta-essência da felicidade, cintilante, passará a adornar todos os nossos gestos…

Jorge Dourado - O pássaro de penas douradas e a bela do arco-íris – 05/08/2008

segunda-feira, julho 07, 2008

Venenos de Deus, Remédios do Diabo


Pablo Picasso - The Dream

…O médico estranha a sua própria ansiedade. Naquele lugar sem outra evasão, o relato dos sonhos de Bartolomeu era uma espécie de matinée de cinema. O doente desenrola a voz numa poalha luminosa e o português vai-se lembrando da sua cidade, dos rumores confusos provenientes das ruas atafulhadas de carros e gentes. E recorda Deolinda, o encontro fugaz e fabuloso, sob o fundo de luz branca de Lisboa.
Quando Sidónio volta a dar conta do tempo, já Bartolomeu desnovela: «…chovia aquela noite…».
- Chovia no sonho?
- Oh, Doutor, o senhor sofre mesmo de poesias: então chove nos sonhos?
- Eu, poesias?
- Não é de agora. O senhor já anda poetando há muito tempo. Por exemplo, quando o senhor me aconselha para eu cortar nas bebidas…
- Acha que isso é poesia?
- Então não é? Corta-se na bebida? A gente pode cortar nas árvores, cortar na roupa, cortar sei lá onde, mas diga lá, Doutor, que faca corta um líquido? Só a faca da poesia.
- Você é que anda muito inspirado nestes dias, meu caro Bartolomeu.
- Ah, é verdade! Há ainda mais outra: o senhor diz que beber me faz gota. Sabendo os litros que bebo, Doutor, é preciso muita poesia para falar em gota…
Que também ele, Bartolomeu Sozinho, fora dado a poesias. E pela centésima vez reabre a gaveta para reler num bloco de notas algo que escrevera sobre tempos e pensamentos. Avança para o centro do aposento e faz de conta que vai lendo um invisível manuscrito:
«Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.» A mão tomba-lhe num inesperado abatimento e Bartolomeu sacode a cabeça como surpreso pela sua própria criação.
- Munda diz que isto não é da minha autoria. Mas eu escrevi isto a bordo do Infante D. Henrique. Eu lá também sofri de poesia.
O português contempla o velho com comiseração. A inexistente folha de papel que lhe pende do braço pesa mais do que ele pode suportar. E ele mesmo, Sidónio Rosa, se sente subitamente envelhecido. A idade é uma repentina doença: surge quando menos se espera, uma simples desilusão, um desacato com a esperança. Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós.


in “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” – Mia Couto


sábado, junho 28, 2008

XXXV

Amedeo Modigliani - Large Nude

A tua mão voou dos meus olhos para o dia.
A luz entrou como uma roseira florida.
Areia e céu palpitavam como uma
culminante colmeia cortada nas turquesas.

A tua mão tocou sílabas que tilintavam, taças,
galhetas com azeite amarelo,
corolas, fontes e, sobretudo, amor,
amor: a tua mão pura poupou as colheres.

A tarde foi-se. Secretamente a noite deslizou
sobre o sono dos homens sua cápsula celeste.
A madressilva soltou um triste aroma selvagem.

E a tua mão voltou voando do seu voo
a fechar suas penas que julguei perdidas
sobre os meus olhos devorados pela sombra.

Pablo Neruda – Cem sonetos de amor - XXXV

sexta-feira, junho 20, 2008

A terceira rosa


Pierre Auguste Cot - Spring

Somos dois piratas nos mares do sul, navegamos por dentro um do outro, amanhã partirei para outro mar, amanhã estarás em outra ilha, não é possível tanto azul, tanta tensão, tanta pressão dentro de nós. O fio vai partir-se, por instinto o sabemos, os que se amam vão morrer, tu própria o dizes, pela primeira vez o dizes: Não quero morrer de ti.
Desde sempre, diz Rosário, minha mãe. Desde sempre. Nos astros, nas mãos, dentro, no centro. Uma força nos impele um para o outro, acaso, correntes mágicas, uma força nos funde e nos divide. Não é possível tanta lua, tanta maré, tanta alquimia. Ou eu hei-de ser tu ou tu hás-de ser eu, morreremos de não podermos ser só um, isso o sabemos, isso nos dói. Por isso as mãos se torcem, as bocas se mordem, os corpos se querem e se temem.
- Nunca se viu, diz uma voz atrás de nós.
Outros nenhuns. Nunca mais.
O Gavião dos Sete Mares acaba de zarpar, somos dois piratas desamparados na sala do cinema onde as luzes acabam de acender-se, ainda estamos de dedos entrelaçados, há olhos que nos fixam e nos matam, mas nós somos de outro azul, nós somos de outro mar, o mesmo vento nos impele, a mesma força nos une e nos separa.

in “A terceira rosa” – Manuel Alegre

terça-feira, junho 10, 2008

Alma


William A Bouguereau - Le gouter

…Mas era ali, na Igreja, ao fim do dia, com a luz coada pelos vitrais, as imagens da Virgem e do Senhor dos Passos, os quadros da Paixão, era ali, recitado em coro, que o Padre-nosso parecia música. Sobretudo quando em mim se fixavam os olhos azuis de Maria do Ó, filha de um sargento que frequentava a Escola Central, instalada no quartel da vila por influência de meu avô Geraldo Pais, no tempo da Primeira República.
Ela era de Portimão e eu, propenso já ao romantismo, ao devaneio, senão mesmo ao desvario, pensava: moira encantada. Não sei se pelo nome, se pelo azul dos olhos, que era para mim a cor do sul, o certo é que ela me inspirou, não direi a primeira paixão, que só depois viria a saber o que era, mas o primeiro encantamento.
Mandava-lhe bilhetinhos pela minha irmã, ela respondia com outros, às vezes só com risinhos e olhos meigos, ao fim da tarde, sentada na Igreja, durante o catecismo. Às tantas já ninguém prestava atenção à catequista: olhavam ora para ela ora para mim, havia risinhos das raparigas, os rapazes faziam-lhes caretas, Nicolau, no meio da ladainha, começava a dizer baixinho, ao mesmo ritmo: A Maria do Ó só olha pró Duarte, a Maria do Ó só olha pró Duarte.
Às vezes eu respondia-lhe com uma canelada, ele não se ficava e lá vinha o Padre Aníbal, com a batina abotoada de alto a baixo e as botas a ranger, repor a ordem nas aulas de catecismo.
Uma tarde sentei-me com ela nos degraus do Cruzeiro, contei-lhe que os namorados ciganos faziam juramentos de sangue e perguntei-lhe se ela não queria fazer um comigo. Ela acenou que sim, muito corada, e o meu coração bateu descompassadamente…

in “Alma” – Manuel Alegre

quinta-feira, maio 29, 2008

Terra Sonâmbula

Valente Malangatana - Sem título

- Por que mentiste sobre mim?, lhe perguntei.
- Porque não queria que fosses.
- Mas eu não vou embora, Carolinda.
- Não acredito, isto não é terra de ninguém ficar. Vais partir, tu não pertences aqui.
- Mas por que razão me soltas, então?
- Para que vás para tão longe que pareças impossível. E agora vai-te e não voltes nunca mais.
Depois, me empurrou com suavidade. Mas eu resisti, me demorando junto dela. Assim, de face em riste, ela me surgia exclusivamente única, triste como pétala depois da flor. Meu peito se encheu. Eu sei que em cada mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava essa doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento confirmava: o melhor da vida é o que não há-de vir.

in “Terra Sonâmbula” - Mia Couto


segunda-feira, maio 12, 2008

único poema

Corinna Button - Storm brewing II


no teu corpo é que o poema faz amor,

a dor das casas, o cheiro húmido das pétalas, as flores mais escuras.

quando uma nuvem te atravessa, é que o punhal fere o silêncio,

a morte dança, o mar começa.

no teu corpo é que as palavras carne e água são de carne e água,

os seios bússolas, a noite mágoa.

se uma faúlha acende um poço de carvão, a vontade irrompe o cavalo do sangue.

é a tua pele que abre os olhos da chuva, a mão do vento, o dia claro.

se um beijo desperta a ira dos relâmpagos, a manhã desce ao sal da língua, o tempo pára.

sobre um novelo de palha, os ovos estalam nas estrias delicadas.

troveja fortemente se o céu diz o teu nome.



Alice Macedo Campos – único poema - in "o ciclo menstrual da noite"


quinta-feira, maio 01, 2008

C

Gustav Klimt - Biscie D'Acqua

No meio da terra afastarei
as esmeraldas para te ver
e tu estarás copiando as espigas
com uma pluma de água mensageira.

Que mundo! Que profunda salsa!
Que navio navegando na doçura!
E tu talvez e eu talvez topázio!
E não haverá separação nos sinos.

E haverá apenas o ar livre,
as maçãs levadas pelo vento,
o suculento livro na ramada,

lá onde os cravos respiram
criaremos uma roupagem que resista
à eternidade de um beijo vitorioso.


Pablo Neruda – Cem sonetos de amor - C

sábado, abril 19, 2008

Recuso os sonhos que te ignoram


Annouchka Brochet - The Kiss3

Recuso os sonhos que te ignoram e os desejos que não possas despertar. Não quero fazer um gesto que não te louve, nem cuidar uma flor que não te enfeite; não quero saudar as aves que ignorem o caminho da tua janela, nem beber em ribeiros que não tenham acolhido o teu reflexo. Não quero visitar países que os teus sonhos não tenham percorrido como taumaturgos vindos de fora, nem habitar cabanas, que não tenham abrigado o teu repouso. Nada quero saber de quem te precedeu em meus dias, nem dos seres que aí permanecem.

in “Correspondência Amorosa – Rainer Maria Rilke a Lou Andreas-Salomé”

domingo, abril 06, 2008

O velho que lia romances de amor


Martin Johnson Heade - Cattleya Orchid and Three Brazilian Hummingbirds


- Olha, com toda a confusão do morto já quase me esquecia. Trouxe-te dois livros.
Os olhos do velho iluminaram-se.
- De amor?
O dentista fez que sim.
António José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o dentista abastecia-o de leitura.
- São tristes? – perguntava o velho.
- De chorar rios de lágrimas – garantia o dentista.
- Com pessoas que se amam mesmo?
- Como ninguém nunca amou.
- Sofrem muito?
- Eu quase não consegui suportar – respondia o dentista.
Mas o doutor Rubicundo Loachamín não lia os romances.
Quando o velho lhe pediu o favor de lhe trazer leitura, indicando muito claramente as suas preferências – sofrimentos, amores infelizes e desfechos felizes - , o dentista sentiu que estava perante um encargo difícil de cumprir.
Pensava em como seria ridículo entrar numa livraria de Guaiaquil e pedir: “Dê-me um romance bem triste, com muito sofrimento por causa do amor e com um final feliz”. Haviam de tomá-lo por um velho maricas, e a solução veio ele a encontrá-la inesperadamente num bordel da marginal.
O dentista gostava de pretas, primeiro porque eram capazes de dizer palavras que punham de pé um pugilista KO e, segundo, porque não suavam na cama.
Uma tarde, estava ele a retouçar com Josefina, uma esmeraldina de pele brilhante como a de um tambor. Quando viu um lote de livros arrumados em cima da cómoda.
- Tu lês? – perguntou.
- Leio. Mas devagarinho – respondeu a mulher.
- E quais são os livros de que gostas mais?
- Os romances de amor – respondeu Josefina, acrescentando os mesmos gostos de António José Bolívar. A partir dessa tarde Josefina foi alternando os seus deveres de dama de companhia com os de crítico literário e, de seis em seis meses, seleccionava os dois romances que, na sua opinião, proporcionavam maiores sofrimentos, os mesmos que mais tarde António José Bolívar Proaño lia na solidão da sua choça diante do rio Nangaritza.
O velho recebeu os livros, examinou as capas e declarou que gostava.


In “O velho que lia romances de amor” – Luis Sepúlveda

quinta-feira, março 27, 2008

As nuvens

Vincent Van Gogh - Wheatfields Under Thunder Clouds

Quando era miúdo, sempre que podia, saia para o jardim. Adorava aquelas longas e quentes tardes de Verão deitado na relva fresca a observar as nuvens que passavam. Gostava de anotar no meu caderno de capa negra o que ia encontrando em cada uma delas. Um cavalo a galope. O D. Afonso Henriques de espada em punho a atacar os mouros. O rosto da bela Maria, minha colega de carteira da primária. O Gomes pronto a marcar mais um golo ao Benfica… Havia sempre um significado para todas. Hoje, no céu, vejo nuvens. Umas brancas, outras mais cinzentas, mas todas elas apenas nuvens. Quem me dera que não fosse assim. Se pudesse escolhia, em todas, ver-te a ti. Surgias num vestido de Sol debruado a Beijinhos do Mar. Entre os cabelos floriam graciosas Camélias vermelhas. E dezenas de Andorinhas guardariam os teus passos… Como posso esquecer-te, Amor? Porque partiste levando contigo toda a luz que me restava? Eram os teus lábios que me traziam as palavras mais doces. Nos teus braços encontrava o refúgio, o aconchego. E o calor do teu corpo moldado ao meu… Lá fora, numa dança sincronizada e alheios a tudo, estão os Girassóis. Da minha janela observo-os. Como giram devagar os Girassóis… E por cada nuvem que cruza o céu, nasce nos meus olhos uma lágrima pela tua ausência.

JFDourado – As nuvens – 27/03/2008

sábado, março 15, 2008

Rosa tú, melancólica


Edvard Munch - Melancholy

El alma vuela y vuela

Buscándote a lo lejos,

Rosa tú, melancólica

Rosa de mi recuerdo.

Cuando la madrugada

Va el campo humedeciendo,

Y el dia es como un niño

Que despierta en el cielo,

Rosa tú, melancólica,

Ojos de sombra llenos,

Desde mi estrecha sábana

Toco tu firme cuerpo.

Cuando ya el alto sol

Ardió com su alto fuego,

Cuando la tarde cae

Del ocaso deshecho,

Yo en mi lejana mesa

Tu oscuro pan contemplo.

Y en la noche cargada

De ardoroso silencio,

Rosa tú, melancólica

Rosa de mi recuerdo,

Dorada, viva y húmeda,

Bajando vas del techo,

Tomas mi mano fria

Y te me quedas viendo.

Cierro entonces los ojos

Pêro siempre te veo

Clavada allí, clavando

Tu mirada em mi pecho,

Larga mirada fija,

Como un puñal de sueño.


Nicolás Guillén - Rosa tú, melancólica



domingo, fevereiro 17, 2008

O meu amor existe

Francoise Nielly - Untitled 409


O meu amor tem lábios de silêncio
E mão de bailarina
E voa como o vento
E abraça-me onde a solidão termina

O meu amor tem trinta mil cavalos
A galopar no peito
E um sorriso só dela
Que nasce quando a seu lado eu me deito

O meu amor ensinou-me a chegar
Sedento de ternura
Separou as minhas feridas
E pôs-me a salvo para além da loucura

O meu amor ensinou-me a partir
Nalguma noite triste
Mas antes, ensinou-me
A não esquecer que o meu amor existe



Jorge Palma – O meu amor existe

quinta-feira, janeiro 31, 2008

Pôr-do-sol

Vincent Van Gogh - Sunset

Pétalas de rosas e açucenas, querendo ser pequenas nuvens perfumadas, flutuam em teu redor ao sabor da brisa de um dia que entardece. Acenas ao longe. Tudo apenas um sorriso rútilo de Centáurea. Resplandecente. E por entre as cores garridas de um arco-íris só nosso emerge o teu encanto de Amor-perfeito. Caminhas para mim e deixas-me sem respiração. Por onde passas florescem frondosos jardins de Hortênsias e Buganvílias, e escuta-se o jucundo canto dos Pintassilgos. Estendes a tua mão de encontro à minha. Beijas-me. E por um momento sinto-o como se de novo fosse este o primeiro beijo. Os teus lábios salgados. Os meus, suplicantes. Unidos. E o tempo a não ser tempo. O espaço a não ser espaço. Sentas-te. Bem junto a mim. Palavras. Versos. Poemas. De amor. Depois, em silêncio cúmplice, contemplamos o Sol maiúsculo que se despede tecendo os últimos fios de prata. O mar, cansado, a repousar sob um horizonte matizado em laranjas, violetas e azuis turquesa… Voltamo-nos um para o outro. Olhos nos olhos. E sorrimos…

JFDourado – Pôr-do-sol – 31/01/2008



quarta-feira, janeiro 16, 2008

Saudades


Jules Pascin - Femme en Robe Rose

Magoa-me a saudade

do sobressalto dos corpos

ferindo-se de ternura

dói-me a distante lembrança

do teu vestido

caindo aos nossos pés


Magoa-me a saudade

do tempo em que te habitava

como o sal ocupa o mar

como a luz recolhendo-se

nas pupilas desatentas


Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,

tua noite sem remédio

tua virtude, tua carência

eu

que longe de ti sou fraco

eu

que já fui água, seiva vegetal

sou agora gota trémula, raiz exposta


Traz

de novo, meu amor,

a transparência da água

ocupação à minha ternura vadia

mergulha os teus dedos

no feitiço do meu peito

e espanta na gruta funda de mim

os animais que atormentam o meu sono



Mia Couto - Saudades