domingo, maio 27, 2007

XXII


Agon Schiele - Reclining Semi-Nude With Red Hat

Quantas vezes, amor, te amei sem te ver e talvez sem me lembrar,

sem reconhecer teu olhar, sem olhar-te, centáurea,

em regiões hostis, num meio-dia ardente:

tu eras só o aroma dos cereais que amo.


Vi-te talvez, imaginei-te ao passar erguendo uma taça

em Angol, à luz da lua de Junho,

ou eras tu a cintura daquela guitarra

que toquei nas trevas e soou como o mar desmedido.


Amei-te sem o saber, e procurei a tua memória.

Nas casas vazias entrei com lanterna para roubar o teu retrato.

Mas eu já sabia como eras. De repente


enquanto ias comigo toquei-te e a minha vida parou:

estavas diante de mim, reinando sobre mim, e ainda reinas.

Como fogueira nos bosques, o fogo é o teu reino.


Pablo Neruda – XXII - Cem sonetos de amor


sexta-feira, maio 11, 2007

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio


James Tissot - Young Woman in a Boat

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)


Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.


Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.


Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.


Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.


Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento -

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.


Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.


E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.


Odes de Ricardo Reis - Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio