domingo, novembro 26, 2006

Em todas as ruas te encontro


William A Bouguereau - The nymphaeum

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que eu ando

a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto, tão perto, tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura


Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco


Mário Cesariny - Em todas as ruas te encontro

sábado, novembro 18, 2006

Amo o teu túmido candor de astro


John William Waterhouse - Hylas and the Nymphs

Amo o teu túmido candor de astro

a tua pura integridade delicada

a tua permanente adolescência de segredo

a tua fragilidade sempre altiva


Por ti eu sou a leve segurança

de um peito que pulsa e canta a sua chama

que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro

ou à chuva das tuas pétalas de prata


Se guardo algum tesouro não o prendo

porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto

que dure e flua nas tuas veias lentas

e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar


Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva

para que sintas a verde frescura

de um pomar de brancas cortesias

porque é por ti que nasço

porque amo o ouro vivo do teu rosto.


António Ramos Rosa - Amo o teu túmido candor de astro

domingo, novembro 12, 2006

Estrela da Tarde


Auguste Renoir - La Promenade


Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia

Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia

Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria.

Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia

Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia

e na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria

Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia

Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia.


Ary dos Santos – Estrela da Tarde

sábado, novembro 04, 2006

O poder absoluto


William A Bouguereau - Young girl defending herself from Eros

Duas bocas descobrem o veludo incandescente

e saboreiam o sabor perfeito de um fruto liso

que é um sumo do universo. Com a sua espuma constante

os amantes tecem uma abóbada leve de seda e espaço.

Vivem num volume cintilante o presente absoluto.


Corpos encerrados em superfícies delicadas

abrem-se como velas vermelhas e o calor brilha,

clareiras acendem-se numa tranquilidade branca,

os olhos embriagam-se de miríades de cores

e todos os vocábulos são recentes como o orvalho,


Criam a origem pela origem, num corpo duplo e uno,

transformam-se subindo morrendo em verde orgia,

inertes renascem de onda em onda radiantes,

reconhecem-se no vento que os expande e os dissolve,

o mundo é uma brecha um esplendor um redemoinho.


António Ramos Rosa - O poder absoluto


quarta-feira, novembro 01, 2006

A inigualável


John William Waterhouse - Ophelia [lying in the meadow]

Ai, como eu te queria toda de violetas

E flébil de cetim...

Teus dedos longos, de marfim,

Que os sombreassem jóias pretas...

E tão febril e delicada

Que não pudesses dar um passo -

Sonhando estrelas, transtornada,

Com estampas de cor no regaço...

Queria-te nua e friorenta,

Aconchegando-te em zibelinas -

Sonolenta,

Ruiva de éteres e morfinas...

Ah! que as tuas nostalgias, fossem guizos de prata -

Teus frenesis, lantejoulas;

E os ócios em que estiolas,

Luar que se desbarata...

Teus beijos, queria-os de Tule,

Transparecendo carmim -

Os teus espasmos de seda...

- Água fria e clara numa noite azul,

Água, devia ser o teu amor por mim...


Mário de Sá Carneiro - A inigualável