sexta-feira, maio 20, 2011

Sputnik, meu amor


Triton and a Nereid - Arnold Böcklin


Por que será que estamos condenados a ser assim tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Porquê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?
Virei-me de costas sobre a laje de pedra, fitei o céu por cima de mim e pus-me a pensar na quantidade imensa de satélites que naquele preciso momento deviam girar à volta da Terra. No fio do horizonte era ainda possível distinguir uma réstia de luz, e as estrelas começavam a brilhar no céu de um profundo tom púrpura. Procurei com o olhar a luz de um satélite, mas havia demasiada claridade para distinguir fosse o que fosse a olho nu. As estrelas que estavam à vista permaneciam imóveis, cada uma no seu sítio, como se cravadas no céu. Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do Sputnik que continuavam a dar voltas à Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade. Solitários pedaços de metal que se encontram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.


in “Sputnik, meu amor” - Haruki Murakami - Página 200

quarta-feira, março 16, 2011

A Relíquia


Jacqueline with Flowers - Pablo Picasso


Não resisti: descalço, em ceroulas, saí ao corredor adormecido; e cravei à fechadura da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente – que quase receava feri-la com a devorante chama do seu raio sanguíneo… Enxerguei num círculo de claridade uma toalha caída na esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ela atravessasse, nua e esplêndida, esse disco escasso de luz – quando senti de repente, por trás, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, misérrimo Raposo, não podia escapar. De um lado, estava ele, enorme. Do outro, o topo do corredor, maciço.
Vagarosamente, calado, com método, o hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas… Eu rugi: «Bruto!» Ele ciciou: «Silêncio!» E outra vez, tendo-me ali cercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, lívido, em ceroulas, disse-lhe com imensa dignidade:
- Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do túmulo do Senhor, e eu não querer escândalos por causa da minha tia… Mas se estivéssemos em Lisboa, fora de portas, num sítio que eu cá sei, comia-lhe os fígados! Nem você sabe do que se livrou. Vá com esta, comia-lhe os fígados!
E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções de arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.


in “A Relíquia” – Eça de Queirós – Páginas 99 e 100


sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Correntes d'Escritas 2011



As Correntes d'Escritas estão de volta à Póvoa de Varzim!


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