sábado, setembro 20, 2008

O outro pé da sereia

Auguste Renoir - La Promenade


O goês dizia a verdade. Nos últimos meses ele e a esposa já não davam asas aos lençóis. Todas as tardes, o alfaiate se demorava na penumbra da loja, cumprindo horas extraordinárias. Há muito que não havia trabalho. De repente, porém, chegou a inesperada encomenda: fardamentos para os régulos.
A esposa fazia de modelo para que o marido confirmasse as medidas. Jesustino metia uma dúzia de alfinetes na boca enquanto, de joelhos, marcava a dobra das calças. Um dia, receava a mulher, ele acabaria engolindo um alfinete. Na versão dele, isso já tinha acontecido. O malfadado alfinete ainda lhe viajava pelo corpo, pontiagudizando-lhe as entranhas. Sabia lá onde, em cada dia, o alfinete lhe ia parar?
Já lá iam os tempos em que Jesustino Rodrigues, inteiramente despido, pedia à esposa que lhe inspeccionasse as magras carnes. Ela fazia de conta que acreditava no pretexto e as suas mãos, com competente doçura, lhe percorriam recantos e saliências do corpo. Três vezes por semana, a cuidadosa inspecção ocorria. Há meses que as mãos de Constança se haviam desocupado.
Naquela noite, o alfaiate cheirou os braços e as mãos para confirmar que não estava marcado pelos cheiros de Luzmina. Tranquilizou-se: afinal, a irmã tinha um perfume gémeo, indistinto do dele. Constança não poderia nunca desconfiar. Foi directo à casa de banho e ficou-se olhando no espelho: o remorso lhe escurecia o rosto. Quando se deitou foi surpreendido pela pergunta da esposa:
- Por que se demorou tanto na casa de banho?
- Demorei, Eu? Despachei-me enquanto o diabo lhe esfregava o olho!
- Esteve a cortar a unhas, eu bem escutei.
A mandioca azedava. Constança desconfiava do marido sempre que ele se preocupava em cortar as unhas dos pés. A sua lógica era simples: só cuida das partes escondidas quem as vai mostrar a alguém.
- Diga-se de paisagem, Constança: eu estava me bonitando para si.
- Para mim?
- É que hoje eu queria que você me procurasse o alfinete!
Ela se recusou. Há tempos esquecidos que Jesustino não se preocupava com risco de ser alfinetado. Por que razão ele insistia agora no velho e esquecido pedido?
- É que tenho receio que o alfinete tenha ido parar lá.
- Lá, onde?, inquiriu a mulher.
- Lá, repetia Jesustino e apontou com o queixo o muito baixo-ventre.


in “O outro pé da sereia” – Mia Couto



2 comentários:

Ana disse...

ah ah ah :) este Mia Couto é um malandro;) *

JFDourado disse...

;D

mais um grande livro do Mia Couto este "O outro pé da sereia"!