sexta-feira, dezembro 26, 2008

O principezinho


Wanderers by the Sea - Odd Nerdrum


Foi então que apareceu a raposa.
- Olá, bom dia! – disse a raposa.
- Olá, bom dia! – respondeu educadamente o principezinho, que se virou para trás mas não viu ninguém.
- Estou aqui, debaixo da macieira – disse a voz.
- Quem és tu? – perguntou o principezinho – És bem bonita…
- Sou uma raposa – disse a raposa.
- Anda brincar comigo – pediu-lhe o principezinho. – Estou tão triste…
- Não posso ir brincar contigo – disse a raposa. – Ainda ninguém me cativou…
- Ah! Então, desculpa! – disse o principezinho.
Mas pôs-se a pensar, a pensar, e acabou por perguntar:
- «Cativar» quer dizer o quê?
- Vê-se logo que não és de cá – disse a raposa. – De que andas tu à procura?
- Ando à procura dos homens – disse o principezinho. - «Cativar» quer dizer o quê?
- Os homens têm espingardas e passam o tempo a caçar – disse a raposa. – É uma grande maçada! E também fazem criação de galinhas. Aliás, na minha opinião, é o único interesse deles. Andas à procura de galinhas?
- Não – disse o principezinho. – Ando à procura de amigos. «Cativar» quer dizer o quê?
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. – Quer dizer «criar laços»…
- Criar laços?
- Sim, laços – disse a raposa. – Ora vê: por enquanto tu não és para mim senão um rapazinho perfeitamente igual a cem mil outros rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto eu não sou para ti senão uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativares, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E eu também passo a ser única no mundo para ti…
- Parece-me que estou a perceber – disse o principezinho. – Sabes, há uma certa flor… tenho a impressão que ela me cativou…
- É bem possível – disse a raposa. – Vê-se cada coisa cá na Terra…
- Oh! Mas não é na Terra! – disse o principezinho.
A raposa pareceu muito intrigada.
- Então, é noutro planeta?
- É.
- E nesse planeta há caçadores?
- Não.
- Começo a achar-lhe alguma graça… E galinhas?
- Não.
- Não há bela sem senão… - suspirou a raposa.
Mas voltou a insistir na mesma ideia:
- Tenho uma vida terrivelmente monótona. Eu caço galinhas e os homens caçam-me a mim. As galinhas são todas parecidas umas com as outras e os homens são todos parecidos uns com os outros. Por isso, às vezes, aborreço-me muito. Mas, se tu me cativares, a minha vida fica cheia de sol. Fico a conhecer uns passos diferentes de todos os outros passos. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus hão-de chamar-me para fora da toca, como uma música. E depois, repara! Estás a ver aqueles campos de trigo ali adiante? Eu não gosto de pão e, por isso, o trigo não me serve para nada. Os campos de trigo não me fazem lembrar nada. E é uma triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Então, quando tu me tiveres cativado, vai ser maravilhoso! O trigo é dourado e há-de fazer-me lembrar de ti. E hei-de gostar do som do vento a bater no trigo…
A raposa calou-se e ficou a olhar para o principezinho durante muito tempo.
- Se fazes favor… Cativa-me! – acabou finalmente por pedir.
- Eu bem gostava – respondeu o principezinho, - mas não tenho muito tempo. Tenho amigos para descobrir e uma data de coisas para conhecer…
- Só conhecemos o que cativamos – disse a raposa. – Os homens deixaram de ter tempo para conhecer o que quer que seja. Compram as coisas já feitas aos vendedores. Mas como não há vendedores de amigos, os homens deixaram de ter amigos. Se queres um amigo, cativa-me!
- E tenho de fazer o quê? – disse o principezinho.
- Tens que ter muita paciência. Primeiro, sentas-te longe de mim, assim, na relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas podes-te sentar cada dia um bocadinho mais perto…
O principezinho voltou no dia seguinte.
- Era melhor teres vindo à mesma hora – disse a raposa. – Por exemplo, se vieres às quatro horas, às três, já eu começo a estar feliz. E quanto mais perto for da hora, mais feliz me sinto. Às quatro em ponto hei-de estar toda agitada e toda inquieta: fico a conhecer o preço da felicidade! Mas se chegares a uma hora qualquer, eu nunca vou saber a que horas hei-de começar a arranjar o meu coração, a vesti-lo, a pô-lo bonito… Precisamos de rituais.
- O que é um ritual? – disse o principezinho.
- Também é uma coisa de que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. – É o que torna um dia diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas. Por exemplo, os meus caçadores têm um ritual. À quinta-feira, vão dançar com as raparigas da aldeia. Por isso, a quinta-feira é um dia maravilhoso. Eu posso ir passear às vinhas. Se os caçadores fossem dançar num dia qualquer, os dias eram todos iguais uns aos outros e eu nunca tinha férias.
E o principezinho cativou a raposa. Mas quando se aproximou a hora da despedida:
- Ai! – suspirou a raposa – Ai que me vou pôr a chorar…
- A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu não te desejava mal nenhum, mas tu pediste para eu te cativar…
- Pois pedi – disse a raposa-
- Mas agora vais-te pôr a chorar! – disse o principezinho.
- Pois vou – disse a raposa.
- Então não ganhaste nada com isso!
- Ai ganhei, sim, senhor! – disse a raposa. – Por causa da cor do trigo…
E acrescentou:
- Anda, vai ver as rosas outra vez. Vais entender que a tua é única no mundo. Quando vieres ter comigo, dou-te um presente de despedida: conto-te um segredo.


in “O principezinho” - Antoine de Saint-Exupéry

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Catarina ou o sabor da maçã

Kees van Dongen - Le doigt sur la joue


A gente, às vezes, acordava de noite e conversávamos. Na noite de Sábado para Domingo acordámos às seis e meia da manhã. Ela disse que lhe apetecia fazer uma coisa fora de propósito. Eu propus irmos ver nascer o Sol ao alto da Peninha e ela achou óptimo. Vestimo-nos à pressa. Eu enfiei por cima de tudo uma camisola grossa de lã, metemo-nos no carro e lá fomos pela serra acima. A luz do dia começava a distinguir o contorno dos montes mas quando lá chegámos acima o sol não tinha nascido ainda, Ficámos no carro, à espera, de mão dada até que ela se aproximou mais de mim e me deu dois daqueles beijos que ela sabia e de que eu estava a tomar o gosto. A certa altura lá vinha o Sol a espreitar no fundo do horizonte. Perto, nem viv’alma. Nem um cão ladrava. Era só o pequeno coro dos pássaros a acordarem-se uns aos outros. O belo disco de luz alaranjada ia-se erguendo e nós ficámos a olhar para o Sol e para os raios que ele ia pondo na encosta da serra. Ficámos quietos e silenciosos como numa missa e aquele ritual diário, mas que a gente raras vezes tinha ocasião de ver, transmitia-nos uma grande serenidade e uma imensa emoção. Senti a mão dela a apertar mais a minha. Ela disse:
- O mundo é tão bonito!
Eu comentei:
- O que faz isto bonito está dentro de nós. Muita gente fica indiferente a este Sol a nascer e quem tem ódio no coração fica lá com o ódio.
A Catarina estava com um brilho no olhar e parecia querer aspirar com as narinas tudo o que se estava a passar. Deixou cair uma frase como se fosse uma resposta ao que eu lhe tinha dito:
- Talvez fosse possível ensinar as pessoas a ver nascer o Sol…
Eu perguntei:
- E a ti, quem te ensinou?
- Tudo me ensinou: o meu pai. A minha mãe, o mundo em que eu nasci… Tudo mais ou menos me preparou para coisas destas. Viver é capaz de ser uma educação de sentimentos.
- Sim. É capaz de ser, só que nós temos uma imensa capacidade de sermos infiéis às coisas para que somos feitos.
O Sol tinha acabado de nascer e o dia prometia estar bonito. Viemos para o carro e descemos a Colares para a nossa casa. Fomos dormir mas, de cada vez que a gente entrava na cama, a Catarina tinha que fazer os seus rituais de carícias que sempre acabavam num amor bem soletrado. Como tenho dito, todo este lado sensual da Catarina era uma surpresa para mim. Naquele dia acabámos por cair um para cada lado, sonolentos e cansados, mas quase parecia que, entre o sono, ela pensava no meu corpo e procurava-o com as mãos, mesmo a dormitar.
Quando acordei, o Sol que tínhamos visto nascer, já ia alto e forte. Batia nas janelas e as frinchas deixavam passar pequenos raios de luz que iam bater no chão e na cómoda. Ela continuava a dormir ao meu lado e a mim deu-me para pensar nesta aventura inesperada que completamente me enchia. Gostaria de explicar que, para mim, há uma diferença entre o estar apaixonado e o viver com intensidade uma vibração amorosa. A paixão é cega e o apaixonado não consegue aperceber-se da realidade em que está metido. Eu estava lúcido, até porque a tal outra metade de mim não parava de nos observar e reflectir. Mas a verdade é que eu me sentia preso à Catarina com uma intensidade que não contava já ser capaz de viver e os meus quarenta e muitos anos estavam a desvendar-me forças e estados de alma que eu já não esperava viver.
Levantei-me, desci para a cozinha, tomei o pequeno-almoço e fiz o que se faz nestas ocasiões: preparei café e torradas, pus tudo num tabuleiro e fui levar-lho ao quarto. Ela já estava acordada e riu-se para mim, agradecida. Eu disse:
- Trago-lhe o café e as torradas. Acho que todos os namorados fazem esta rábula nos primeiros dias… É uma espécie de costumes e hábitos dos humanos quando se amam…
-São bem bons estes costumes dos nativos – disse ela, sentando-se na cama. Ficava bem assim, despenteada com o peito a sair dos lençóis. Até a comer a torrada a boca ficava sensual e provocante e eu olhava-a com a sensação de que aquela mulher não tinha nada que ver com a menina que conheci e com quem eu tinha aquelas conversas sobre literatura e estados de alma.


in "Catarina ou o sabor da maçã" - António Alçada Baptista