domingo, dezembro 20, 2009

Feliz Natal!!!


Feliz Natal - Jorge Dourado


Desejo-vos um...

FELIZ NATAL!!! :)



NATAL

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Natal - Manuel Alegre



sábado, dezembro 05, 2009

Vinte e zinco


Oxpecker Head - Theresa Ruth Eichler


Castro olha de si para si: suas pernas estão todas conspurcadas, o matope lhe engomando os movimentos. Pela primeira vez, ele está sujo da mesma matéria com que Irene se manchava. Essa lama que lhe chapeava as pernas, numa pasta cinzenta ao jeito dos elefantes. Parecia envergar África, besuntado dos seus fluidos mais viscerais. Lhe ocorre a lembrança de uma tarde em que o vieram chamar para dar destino a um búfalo que se atolara nos pântanos. O jipe derrapou pelo chão amolecido dos tandos. Súbito, entre as palmeiras lalas, lhe surge a besta, meio afundada na lama. Os cascos pisavam subterrâneas nuvens e as pernas já perdiam função. O bicho dava pena: sob o til da cornadura, os olhos vermelhos como se a terra já assomasse em seu olhar, parecia se descobrir subitamente mortal. Impotente prisioneiro dessa mentira que é haver chão em toda a terra.
O que mais marcou o português não foi a visão desse lento naufrágio. Mas foi o pássaro carraceiro, mais seu bico vermelho. Já o búfalo submergia, inevitável, e a ave ainda se conservava de pouso em seu dorso. Fosse ele o comandante que afundasse junto com o navio.
A lembrança do búfalo lhe chegava agora, como se tudo pesasse e a ave que pousa na curva do horizonte fosse a pique com o mundo. Lhe doía esse simples ensinamento: tudo é terminável, até o futuro.


in “Vinte e zinco” – Mia Couto


sábado, novembro 21, 2009

Lunário


Beleza Pura - Beatriz Milhazes


Antes de partir, Nému, talvez ainda não seja tarde para começares a regressar. Estou sozinho, ardo na memória das noites em que não te conhecia. E não sei se suportarei o peso de teu rosto ausente sobre o peito, tatuado; e talvez recorde a tua respiração enforcando-me, noite após noite, enquanto durmo. Tua mão escavou o desejo entorpecido nestas débeis veias, e já não sei se sonhamos o mesmo sonho, ou se nos levantamos ao mesmo tempo para o amor, mas ainda te amo.
Aliso tuas pálpebras durante as noites de vigia e sei que uma vida anterior à minha presença as feriu. No entanto, sinto que ainda és capaz de me olhar como se eu contemplasse o mar. De resto, os dias acumulam-se uns sobre os outros, iguais, sob o negro esplendor do sol. E latejamos, além, onde nos perdemos para sempre.
As tuas mãos vestiram as minhas, e fizeram-nas voar de sedução em sedução. Mas, dentro das fotografias, erguem-se pirâmides de cintilantes ossos, pequenas nódoas de memórias, feixes de veias quebradas pelas chuvas… não, não é o solitário canto do noitibó que nos surpreende, nítido, persistente, mas sim o grito que há-de crescer do fundo de nós. E, com o tempo, as mãos, as tuas, cairão também no esquecimento… e delas apenas permanecerá uma sensação de ardor sobre a minha pele.
Na boca reacendo uma navalha de lume para sufocar a solidão, e as palavras que já nada podem revelar, nem ajudar.


in “Lunário” – Al Berto

sábado, outubro 31, 2009

O Primo Basílio


The Kiss - Odd Nerdrum


Nunca achara Basílio tão bonito; o quarto mesmo parecia-lhe muito conchegado para aquelas intimidades da paixão: quase julgava possível viver ali, naquele cacifro, anos, feliz com ele, num amor permanente, e lunchs às três horas… Tinham as pieguices clássicas: metiam-se bocadinhos na boca: ela ria com os seus dentinhos brancos: bebiam pelo mesmo copo, devoravam-se de beijos – e ele quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champanhe. Talvez ela não soubesse!
- Como é? – perguntou Luísa erguendo o copo.
- Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preze bebe champanhe por um copo. O copo é bom para o Colares…
Tomou um gole de champanhe, e num beijo passou-o para a boca dela. Luísa riu muito, achou «divino», quis beber mais assim. Ia-se fazendo vermelha, o olhar luzia-lhe.
Tinham tirado os pratos da cama; e sentada à beira do leito, os pezinhos calçados numa meia cor-de-rosa pendiam, agitavam-se, enquanto um pouco dobrada sobre si, os cotovelos sobre o regaço, a cabecinha de lado, tinha em toda a sua pessoa a graça lânguida de uma pomba fatigada.
Basílio achava-a irresistível: quem diria que uma burguesinha podia ter tanto chique, tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre as mãos, beijou-lhos; depois, dizendo muito mal das ligas «tão feias, com fechos de metal», beijou-lhe respeitosamente os joelhos; e então fez-lhe baixinho um pedido. Ela corou, sorriu, dizia: - Não! Não! – E quando saiu do seu delírio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate, murmurou repreensivamente.
- Oh, Basílio!
Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação nova: tinha-a na mão!
Só às seis horas se desprendeu dos seus braços. Luísa fez-lhe jurar que havia de pensar nela toda a noite: - não queria que ele saísse; tinha ciúmes do Grémio, do ar, de tudo! – E já no patamar voltava, beijava-o, louca, repetia:
- E amanhã mais cedo, sim?, para estarmos todo o dia.
- Não vais ver a D. Felicidade?
- Que me importa a D. Felicidade! Não me importa ninguém! Quero-te a ti! Só a ti!
- Ao meio-dia?
- Ao meio-dia!


in “O Primo Basílio” – Eça de Queirós

segunda-feira, outubro 19, 2009

Transparente


Melancholy - Edvard Munch

Esmorece o sorriso no seu olhar em brasa. A redoma por aí ficou jazendo vazia. Já nada resta do doce encantamento. Nada resta daquele tempo em que centelhas luziam na união dos nossos lábios. Das nossas madrugadas confidentes esperando pelo nascer do Sol. Alada, transbordante de luz, alumiando este meu coração revestido de lugente alabanda… Nada resta… Agora o seu nome vem escrito com bistre em papel barato de embrulho. Palavras esfaceladas, espalhando-se sombrias ao sabor do vento cortante que persiste na minha alma. E se por desventura vier um momento onde ainda surja orlada em flamantes filigranas, de imediato fecharei os meus olhos por um segundo nada mais, para depois a ver de novo simplesmente como é. Transparente.

Transparente - Jorge Dourado

quarta-feira, outubro 07, 2009

As velas ardem até ao fim


Sistine Madonna (2 angels detail) - Raphael Sanzio


No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.
- Que é que fica – pergunta o convidado – nos nossos corações?...
- A outra pergunta – responde o general. E não solta a maçaneta da porta. – A outra pergunta resume-se em saber o que ganhámos com toda a nossa inteligência, orgulho e superioridade? A outra pergunta é, se não tivesse sido aquela atracção penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida? Sei que é uma pergunta difícil. Eu não sei responder-lhe. Vivi tudo, vi tudo e não sei responder a essa pergunta. Vi paz e guerra, vi miséria e grandiosidade, vi-te cobarde e vi-me a mim mesmo vaidoso, vi luta e concordância. Mas no fundo, o significado da vida e das nossas acções talvez tenha sido esse laço que nos uniu a alguém – laço ou paixão, chama-lhe o que quiseres. Essa é a pergunta? Sim, é essa. Gostava que me dissesses – continua tão baixo como se tivesse medo de que alguém estivesse atrás das suas costas ouvindo as suas palavras -, qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte? Aconteça o que acontecer? E que se nós vivemos essa paixão, talvez não tenhamos vivido em vão? É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?... E talvez não se dirija a uma pessoa em concreto, mas apenas ao desejo mesmo?... Essa é a pergunta. Ou dirige-se a uma pessoa em concreto, desde sempre e para sempre à única e mesma pessoa misteriosa, que pode ser boa ou má, mas cujas acções e qualidades não influenciam a intensidade da paixão que nos une a ela? Responde, se sabes responder – diz mais alto e insistente.
- Porque é que me perguntas? – replica o outro tranquilamente. – Sabes que é assim.


As velas ardem até ao fim – Sándor Márai


segunda-feira, setembro 28, 2009

As palavras


Hip hip hurra! - Peter Severin Kroyer


São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

As palavras - Eugénio de Andrade



Hoje as palavras são todas para mim... afinal é o meu dia... ;)

sexta-feira, setembro 18, 2009

Barroco Tropical


Dog's Head by a Red Tree - Edvard Munch


Desliguei a chorar e adormeci. Na manhã seguinte acordei (acordaram-me) e quando me olhei ao espelho vi uma mulher morta de olhos pousados nos meus. A cabeça latejava-me de dor. Não fosse a dor e eu seria inteiramente aquela mulher morta. Há momentos em que só a dor nos prende à vida. Entrei na banheira, girei a torneira do chuveiro, o mais quente possível, e chorei muito tempo debaixo da água. Para chorar não há como debaixo da água. O ideal é à chuva, mas apenas resulta quando chove muito, e tem de ser num país tropical, bátegas tépidas, grossas e pesadas, dessas que limpam tudo. Se não estiver a chover na altura em que vem o choro, e quase nunca está, então o melhor que uma mulher pode fazer é procurar um bom chuveiro. Chorei com pena de mim, assombrada pelo vazio que encontrei na minha alma. Chorei por não saber onde estava. Troquei a vida pelos palcos. Achei que podia fugir do amor. Enganei-me. O amor é um cão velho e tinhoso, porém obstinado, que nunca desiste. Abandonamo-lo no mato, para morrer de fome e de sede, para morrer de frio, porque queremos que morra, e dias depois ele está de regresso a casa, a abanar a cauda. Enxotamo-lo à pedrada, mas volta sempre.


in “Barroco Tropical” – José Eduardo Agualusa

segunda-feira, setembro 07, 2009

O jogador da bola


Playing Soccer - Eileen Downes

O jogo caminha para o fim mas a fé do público presente nas bancadas mantém-se. Todos acreditam que o momento especial da noite ainda vai acontecer. Aquela jogada de antologia que depois será narrada ao longo da semana, vezes sem conta, nas tertúlias dos cafés. Anseia-se pela descarga sincronizada e colectiva de adrenalina. Algo só possível numa dessas ocasiões onde milhares de pessoas se unem numa mesma paixão. O futebol no seu estado puro.
Dourado é o jogador de quem se fala. É o fenómeno. O novo Messias que desceu à terra. Os homens gabam-lhe a técnica apurada e a capacidade de remate. As mulheres gabam-lhe… ora bem, as mulheres gabam-lhe muitas coisas, inclusive a técnica e o remate…
E é então que Dourado recebe a bola, dominando-a com o seu famoso e temível pé esquerdo. De imediato escuta-se um bruá vindo das bancadas seguido de silêncio absoluto. Está descaído sobre a esquerda, bem junto ao vértice da área. Parte no um para um. Simula que vai para o lado esquerdo mas inflecte para o centro levantando o esférico num subtil pingo escapando assim à tentativa desesperada do adversário de cortar a jogada. Dá mais um pequeno toque na bola e, já solto, arma a culatra e aplica com o seu pé direito um remate seco e rasteiro. É um disparo indefensável! A bola anicha-se nas redes que estremecem tal a violência do remate. E soltasse um grito colectivo e animalesco que rompe com o silêncio de igreja. Gooooooooolo!!! A multidão, ululante e histérica, põem-se aos saltos fazendo abanar todo o estádio. Abraços e beijos. Sorrisos de orelha a orelha. Os cachecóis azuis e brancos rodopiam nas mãos dos adeptos. As bandeiras da claque são desfraldadas ao vento. Dourado corre para a bandeirinha de canto. Lança-se de joelhos, com a cabeça inclinada para o céu e braços abertos, acolhendo aqueles clamores loucos que ecoam por todo o lado. Leva a mão à camisola, agarra no emblema e beija-o uma, duas vezes. DOURADO, DOURADO, DOURADO… todos cantam sem cessar o nome do seu herói.
Por fim, já no centro do terreno, ele levanta os braços e com os dois indicadores em riste aponta para o público dando uma volta completa. As pessoas aplaudem o gesto e todo o estádio começa a fazer vénias ao mesmo tempo que se escuta o seu nome.
E, nos olhos brilhantes e húmidos do jogador da bola, percebemos que, naquele momento, ele é a pessoa mais feliz do mundo.

O jogador da bola – Jorge Dourado

quarta-feira, agosto 26, 2009

Leite derramado


Amor & Psyche - Edvard Munch


No dia seguinte minha mãe me perguntou se os pais de Matilde lhe consentiam estar a sós comigo em casa, toda tarde depois das aulas. Mal sabia ela que, de noite, eu espreitava da minha janela de fundos a hora de Matilde pisar a relva do jardim na ponta dos pés, entre as amendoeiras e a casa dos empregados. Eu descia correndo e lhe abria a porta da cozinha, que Matilde apenas ultrapassava. Encostava-se na parede da cozinha, a respiração curta, e me arregalava os olhos negros. Em silêncio nos olhávamos por cinco, dez minutos, ela com as mãos na altura dos quadris, agarrando, torcendo a própria saia. E corava pouco a pouco até ficar bem vermelha, como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol. Via seus lábios se entreabrirem, e acima deles brotavam umas gotículas de suor, enquanto suas pálpebras devagar cediam. Enfim eu me jogava contra o corpo dela, pressionava o corpo dela contra a parede da cozinha, sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas, por algum acordo jamais expresso. Com meu tronco eu a esmagava, quase, até que ela dizia, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto.


in “Leite derramado” – Chico Buarque

quarta-feira, agosto 19, 2009

Jesusalém


La Femme au Canapé - Kees van Dongen


A dor de um fruto já tombado, é isso que eu sinto. O anúncio da semente, é isso que espero. Como vês eu me aprendo árvore e chão, tempo e eternidade.
- És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.
Era assim que dizias. E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e, entre suspiros, perguntava: em que dia nasceste? E me respondias, voz trémula: estou nascendo agora. E a tua mão ascendia por entre o vão das minhas pernas e eu voltava a perguntar: onde nasceste? E tu, quase sem voz, respondias: estou nascendo em ti, meu amor. Era assim que dizias. Marcelo, tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. E quando me escrevias, era tão belo o que me contavas que me despia para ler as tuas cartas. Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas com todo o meu corpo, linha por linha, poro por poro.


in “Jesusalém” – Mia Couto

quarta-feira, julho 29, 2009

Os Maias


The Kiss II - Gustav Klimt


Eles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presença de Miss Sara, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro caíam logo no chão – e os seus lábios, os seus braços uniam-se arrebatadamente. Ela escorregava sobre o divã: Carlos ajoelhava numa almofada, trémulo, impaciente, depois da forçada reserva diante de Rosa e diante de Sara – e ali ficava, abraçado à sua cintura, balbuciando mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam frouxos, com os olhos cerrados, numa doçura de desmaio. Ela queria saber o que ele tinha feito durante a longa, longa noite de separação. E Carlos nada tinha a contar senão que pensara nela, que sonhara com ela… Depois era um silêncio: os pardais piavam, as pombas arrulhavam por cima do leve telhado: e Niniche, que os acompanhava sempre, seguia os seus murmúrios, os seus silêncios, enroscada a um canto, com um olho negro reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.


in “Os Maias” – Eça de Queirós

terça-feira, junho 23, 2009

A rosa dourada






Guardou aquele último vislumbre da amada no seu olhar marejado. Lentamente bateu as asas e partiu em direcção do horizonte. Uma única lágrima deslizou-lhe por entre as penas douradas caindo no canteiro das rosas. Ela está feliz, pensou. Ela está feliz e é tudo o que me importa…

A rosa dourada - Jorge Dourado

sexta-feira, junho 12, 2009

O sonho


The Lying Nude - Henri Matisse

O vestido branco de linho moldava-se a ti naquele sopro morno da tarde. Lá ao fundo estendia-se o campo das margaridas amarelas. Dizias: - Vêm! E eu partia no teu encalço deixando cair o casaco. Dos teus esvoaçantes cabelos surgiam Amores-perfeitos, formando, por entre o verde da relva, um trilho de flores violetas. Dizias entre sorrisos de inocente malícia: - Vêm, Amor. Vêm depressa! E continuavas a tua desafiante fuga. O meu olhar perdido. Em ti. O teu corpo, meu poema. De braços abertos e rosto oferecendo-se ao Sol, rodopiávamos por entre as margaridas amarelas. Por todo lado emergiam bolinhas translúcidas e perfumadas que subiam, sem destino, levadas pela brisa. Dizias: - Vêm! Enquanto corrias na direcção das sombras do grande cedro. E houve um momento em que nos enlaçamos no abraço dos amantes. Ao nosso lado, despojado do teu contorno, jazia o vestido branco de linho. E entre glaucos prados florescemos numa nova dança.

O sonho – Jorge Dourado – 12/06/2009

sábado, maio 23, 2009

A sombra do vento

Blue Nude - Henri Matisse


O homem mais sábio que alguma vez conheci, Fermín Romero Torres, tinha-me explicado numa ocasião que não existia na vida experiência comparável com a da primeira vez que se despe uma mulher. Sábio como era, não me tinha mentido, mas tão-pouco me contara toda a verdade. Nada me tinha dito daquele estranho tremelique das mãos que convertia cada botão, cada fecho éclair, em tarefa de titãs. Nada me tinha dito daquele feitiço de pele pálida e trémula, daquele primeiro roçagar de lábios nem daquela miragem que parecia arder em cada poro de pele. Nada me contara de tudo aquilo porque sabia que o milagre só sucedia uma vez e que, ao suceder, falava uma língua de segredos que, mal se desvendavam, fugiam para sempre. Mil vezes quis recuperar aquela primeira tarde no casarão da Avenida del Tibidabo com Bea em que o rumor da chuva arrebatou o mundo. Mil vezes quis regressar e perder-me numa recordação da qual apenas consigo recuperar uma imagem roubada ao calor das chamas. Bea, nua e reluzente de chuva, deitada junto ao fogo, aberta num olhar que me perseguiu desde então. Inclinei-me sobre ela e percorri a pele do seu ventre com a ponta dos dedos. Bea deixou descair as pálpebras, os olhos, e sorriu-me, segura e forte.
- Faz-me o que quiseres – sussurrou.
Tinha dezassete anos e a vida nos lábios.


in “A sombra do vento” – Carlos Ruiz Zafón

Andrew Bird - Masterswarm



Terça-feira - 26 de Maio - 22h00 - Theatro Circo - Braga

Grande concerto! E eu não vou faltar!!! :)

sábado, maio 16, 2009

Antony and the Johnsons - Soft Black Stars



Little children snuggle under soft black stars
And if you look into their eyes soft black stars
Deliver them from the book and the letter and the word
And let them read the silence bathed in soft black stars
Let them trace the raindrops under soft black stars
Let them follow whispers and scare away the night
Let them kiss the featherbreath of soft black stars
And let them ride their horses licked by the wind and the snow
And tip-toe into twilight where we all one day will go
Caressed with tenderness and with no fear at all
Their faces shining river gold brushed by soft black stars
And angels' wings shall soothe their cares
And all the birds shall sing at dawn
Blessed and wet with joy
You and i will meet one day
Under the night sky lit by soft black stars


...e é já logo à noite!!! :)

sábado, maio 09, 2009

A lâmpada de Aladino


Gypsy - kees van Dongen


Nessa noite o Turco montou a sua tenda à entrada de um bosque de coihues e araucárias. O ar cheirava a madeira e a mar. Fumando o seu cachimbo fez um inventário dos seus bens, disse para consigo que o dia não tinha sido mau e meteu-se debaixo da grossa manta castelhana, disposto a dormir em paz.
Preparava-se para apagar com um sopro o candeeiro de latão quando a mulher Kawésqar irrompeu na tenda.
- Laáks – disse em jeito de cumprimento, apontando para a manta escura e espessa que o cobria.
- Não, não laáks, não está à venda – respondeu o Turco. A Kawésqar olhou-o nos olhos, sorriu ao ver que neles se reflectia duas vezes a pequena chama da lâmpada e, com um movimento enérgico, tirou a túnica de pele que lhe cobria o corpo esbelto de navegante e caçadora. Era uma mulher Kawésqar, a origem do fogo que consome os homens.
O Turco observou aquele corpo esbelto, as coxas firmes, as ancas suportadas pela mais forte mastreação, o ventre plano e os seios destinados a amamentar os melhores filhos do mar.
Durante horas amou-a entre gemidos, embates e derrotas. Em cima dela sentiu-se a bordo do navio mais seguro e ela, montada nele, era a mais graciosa das amazonas.
Ao amanhecer, o Turco levou uma mão ao peito e disse que se chamava Aladino. Vamos lá ver, diz o meu nome, Aladino, pediu-lhe, mas a Kawésqar respondeu com palavras, sons duros como os recifes da ilha Wellington.
Laáks? – perguntou a mulher abraçada à manta castelhana.
- Sim, laáks, é tua – respondeu, acariciando o cabelo negro da mulher que caía até às nádegas e se unia à escuridão da manta.
A mulher apontou para si própria, com um dedo entre os seios.
- Sim, laáks de Aladino agora é tua, agora é laáks de como quer que te chames.
A Kawésqar estava de joelhos, acariciava a manta, levava-a até à cara e sorria satisfeita. A chama fraca da lâmpada banhava-lhe o corpo de mel. O Turco viu-a levantar-se, cobrir-se novamente com a túnica de peles de guanaco, fazer um rolo com a manta castelhana até os seus olhos pousarem na lâmpada.
- Também é tua, é justo. Chama-se lâmpada e funciona assim, anda cá para te ensinar, aqui pões gordura ou óleo, deixas que a mecha saia pelo bico e acendes. Toma, é tua.
- Lâmpada de Aladino – ciciou a mulher Kawésqar, agarrando-a como se fosse o mais delicado dos objectos.
- Sim, é a lâmpada de Aladino – confirmou o Turco, e saiu da tenda para encher os pulmões do ar perfumado dos bosques e dos mares austrais.


in “A lâmpada de Aladino” – Luis Sepúlveda


domingo, maio 03, 2009

XCIII


The Kiss - Annouchka Brochet

Se alguma vez o teu peito parar,
Se algo deixar de arder nas tuas veias,
Se na tua boca a voz morrer sem ser palavra,
Se as tuas mãos se esquecerem de voar e adormecerem,

Matilde, amor, deixa teus lábios entreabertos
Porque esse último beijo deve continuar comigo,
Deve ficar imóvel na tua boca para sempre
Para que assim na minha morte me acompanhe também.

Morrerei beijando a tua boca fria,
Abraçando o cacho perdido do teu corpo,
E procurando a luz dos teus olhos fechados.

E assim, quando a terra receber nosso abraço,
Iremos confundidos numa única morte
Viver para sempre a eternidade de um beijo.

XCIII – Cem Sonetos de Amor – Pablo Neruda


sábado, abril 18, 2009

Jerusalém

Eye in eye - Edvard Munch

Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.

in “Jerusalém” – Gonçalo M. Tavares

sábado, março 14, 2009

O carteiro de Pablo Neruda


Mariposa - Beatriz Milhazes


Mario limpou o suor da fronte com as costas da mão, enxugou o telegrama passando-o pelas coxas, e pô-lo na mão do poeta.
- Don Pablo – declarou solene. – Estou apaixonado.
O vate fez do telegrama um leque, que se pôs a abanar diante do queixo.
- Bem – respondeu – não é assim tão grave. Isso tem remédio.
- Remédio? Don Pablo, se isso tem remédio, eu só quero estar doente. Estou apaixonado, perdidamente apaixonado.
A voz do poeta, tradicionalmente lenta, pareceu deixar cair desta vez duas pedras, em vez de palavras.
- Contra quem?
- Don Pablo?
- De quem, homem?
- Chama-se Beatriz.
- Dante, diabos!
- Don Pablo?
- Houve uma vez um poeta que se apaixonou por uma tal Beatriz. As Beatrizes produzem amores desmedidos.
O carteiro esgrimiu a sua esferográfica Bic, e arranhou com ela a palma da mão esquerda. – O que estás a fazer?
- Escrevo o nome desse tal poeta. Dante.
- Dante Alighieri.
- Com «h».
- Não, homem. Com «a».
- «A» como «açucena»?
- Como «açucena» e «aipo».
- Don Pablo?
O poeta sacou da sua caneta verde, pôs a palma da mão do rapaz sobre a rocha e escreveu com letras pomposas. Quando se preparava para abrir o telegrama, Mario bateu a ilustre palma da mão na testa, e suspirou:
- Don Pablo, estou apaixonado.
- Isso já o disseste. E em que posso ser-te útil?
- Tem de ajudar-me.
- Com a minha idade!
- Tem de ajudar-me, porque não sei o que hei-de dizer-lhe. Vejo-a à minha frente e é como se fosse mudo. Não me sai uma só palavra.
- O quê? Não falaste com ela?
- Quase nada. Ontem fui passear pela praia como disse. Fiquei a olhar o mar muito tempo, e não me ocorreu nenhuma metáfora. Então, fui à taberna e comprei uma garrafa de vinho. Bem, foi ela que me vendeu a garrafa.
- Beatriz.
- Beatriz. Fiquei a olhá-la, e apaixonei-me por ela. Neruda coçou a sua plácida calvície com o dorso do lápis.
- Tão depressa!
- Não, tão depressa não. Fiquei a olhá-la aí uns dez minutos.
- E ela?
- E ela disse-me: «O que estás a olhar, porventura tenho macacos na cara?»
- E tu?
- A mim não me ocorreu nada.
- Nada de nada? Não lhe disseste nem uma palavra?
- Assim nada de nada também não. Disse-lhe cinco palavras.
- Quais?
- Como te chamas?
- E ela?
- Ela disse-me «Beatriz González».
- Perguntaste-lhe «como te chamas». Bem, já faz três palavras. Quais foram as outras duas?
- «Beatriz González».
- Beatriz González?
- Ela disse-me «Beatriz González» e então eu repeti «Beatriz González».


in “O carteiro de Pablo Neruda” - Antonio Skármeta

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

sábado, janeiro 24, 2009

Lucilavam as estrelas naquela madrugada de Inverno


Starry Night over the Rhone - Vincent van Gogh

Lucilavam as estrelas naquela madrugada de Inverno. Tudo era perfeito. A claridade da lua, lá no fio do horizonte, derramava um alvo rasto nas águas calmas do mar. A cidade adormecia enquanto nós caminhávamos lado a lado pela marginal. Eu falava. Os meus lábios eram agora a fonte de onde brotavam, uma a uma, todas as palavras que deviam ser ditas. Pedi-te um beijo. Tu… sorriste, e, dando-me a mão, fomos sentar-nos no pequeno muro que ladeia o passeio. Despi o casaco e coloquei-o sobre teus ombros. Inclinaste-te para mim, procurando o meu aconchego. Os braços cingindo-nos pela ilharga…
Sabes, quando estou contigo sinto que tudo é possível. Podíamos partir num cometa de cauda dourada forrado com veludo azul-turquesa. De vez em quando aproximava a minha mão cheia de minúsculas pedrinhas até ti. Contávamos até três e tu sopravas, despontando no céu uma chuva de estrelas cadentes. Ao mundo inteiro surgia o brilho das nossas luzes…
Lucilavam as estrelas naquela madrugada de Inverno em que nos perdemos no infinito dos sentidos. E um novo dia não tardaria a amanhecer…

Lucilavam as estrelas naquela madrugada de Inverno – Jorge Dourado – 24/01/2009