quarta-feira, junho 16, 2010

Há um toque de fogo


Êtude Tete de Jeune Fille - Adolph William Bouguereau

Há um toque de fogo na tua boca. Um veludo que te roça com minúcia pelo rosto, que te aquece e eriça a pele num desassossego dissoluto. Estás ao alcance da noite, onde fluem sôfregos os deleites, onde refulge o orvalho no teu rasto de luz. Lá fora bruxuleiam sombras e escutam-se sons nocturnos. Tudo o resto adormece. E tu estás só. À janela. Estás só e o olhar, que era teu, há muito partiu na nostalgia de um passado sem futuro. Se ao menos palavras houvessem como líricas trovas de amor. Se ao menos bastasse o requebro da voz, qual preciosa renda envolvendo e ornando o teu mundo...

Há um toque de fogo – Jorge Dourado

sexta-feira, junho 04, 2010

a máquina de fazer espanhóis


By the Water - Auguste Renoir


Eu ria-me, uma e outra vez, dizendo que era a mais pura ilusão a de a laura ordenar o que quer que fosse aos nossos miúdos já grandes. se eles se iam calando, e lhe beijavam a testa à saída de uma visita a casa, era porque a viam, e a mim também, claramente, como uma tonta amorosa, cheia de defeitos nas ideias, mas amorosa, tão equivocada e falível, mas amorosa, já velhinha e sem préstimo para ser refutada ou reeducada de alguma melhor forma, mas sempre amorosa. a laura zangava-se, tomava um chá e calava-se como quem respondia à altura, exigindo o seu lugar de grande dama, sábia pela dedicação de sempre e pela generosidade e glória da idade. tornava-se engraçada. apertava os lábios numa tremura ligeira e não queria conversas. eu ia tomar chá sozinho, adorando as nossas brigas de namorados. tão imaturos quanto os mais jovens. tão feitos um para o outro quanto possível. já conhecedores do caminho das pedras que, ao fim de uma ou duas horas, nos levaria novamente ao coração um do outro com mimos e promessas de eterno amor.

e o amor é para heróis. o amor é para heróis.


in “a máquina de fazer espanhóis” – valter hugo mãe - páginas 22 e 23