domingo, fevereiro 25, 2007

Tentei fugir


Uriy Kakichev - Eve


Tentei fugir da mancha mais escura

que existe no teu corpo, e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:

era a dor de ficar sem sepultura.


Bebi entre os teus flancos a loucura

de não poder viver longe de ti:

és a sombra da casa onde nasci,

és a noite que à noite me procura.


Só por dentro de ti há corredores

e em quartos interiores o cheiro a fruta

que veste de frescura a escuridão...


Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti a noite escuta

o que me sai, sem voz, do coração.


David Mourão-Ferreira - Tentei Fugir



sábado, fevereiro 17, 2007

No Fundo Aberto



Auguste Renoir - Irene


Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso

como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha.
Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho,
sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores.
Estamos na aurícula do coração do mundo.
O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra.
Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar
e é a felicidade da língua vegetal
ou a cabeça leve que se inclina para o oriente.
Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue
e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante
enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.

António Ramos Rosa - No Fundo Aberto




sábado, fevereiro 10, 2007

Desce em folhedos tenros a colina


John William Waterhouse - Windflowers


Desce em folhedos tenros a colina:

- Em glaucos, frouxos tons adormecidos,

Que saram, frescos, meus olhos ardidos,

Nos quais a chama do furor declina...


Oh vem, de branco, - do imo da folhagem!

Os ramos, leve, a tua mão aparte.

Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,

Reflectir-te virgem a serena imagem.


De silva doida uma haste esquiva

Quão delicada te osculou n'um dedo

Com um aljofar cor de rosa viva!...


Ligeira a saia... Doce brisa, impele-a.

Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!

Alma de silfo, carne de camélia...


Camilo Pessanha - Desce em folhedos tenros a colina

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Nocturno


Amedeo Modigliani - Caryatid


O desenho

redondo do teu seio

Tornava-te mais cálida, mais nua

Quando eu pensava nele...Imaginei-o,

À beira-mar, de noite, havendo lua...


Talvez a espuma, vindo, conseguisse

Ornar-te o busto de uma renda leve

E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,

Em ti, a branca irmã que nunca teve...


Pelo que no teu colo há de suspenso,

Te supunham as ondas uma delas...

Todo o teu corpo, iluminado, tenso,

Era um convite lúcido às estrelas....


Imaginei-te assim á beira-mar,

Só porque o nosso quarto era tão estreito...

- E, sonolento, deixo-me afogar

No desenho redondo do teu peito...


David Mourão-Ferreira - Nocturno