terça-feira, outubro 30, 2007

Meio-dia


Vincent Van Gogh - Nude Woman Reclining

Contemplo a mulher adormecida. Ocupa uma metade do terraço, longa e voluptuosamente extensa, constelada de um silêncio que é todo aéreo e ondulante. Em volta o mundo converteu-se num pomar unânime. É um meio-dia interminável. Tudo está imóvel, fixo, como um centro. As superfícies lisas, brancas, sem reflexos, sem sombras. Imperceptível, insondável, é o gesto fulgurante da imobilidade. A intensidade da presença identifica-se com o vazio da ausência. O meu corpo estende o corpo da mulher, enrola-se nas volutas da sua música silenciosa, adere às paisagens brancas do seu sono completo. Imóvel, não procuro palavras, nem as mais leves e transparentes: sinto-me fluído, extremamente aberto. Conheço as sensações da mulher nua: água, terra, fogo e vento. Conheço-a e amo-a através delas, numa relação de felicidade intensa e ao mesmo tempo imponderável. O sono da mulher é de horizontes múltiplos e em si germina o centro abrindo o aberto sem limites.

António Ramos Rosa - Meio-dia


segunda-feira, outubro 15, 2007

Para ti


Anabela Bolotinha - Mulher flor

Foi para ti

que desfolhei a chuva

para ti soltei o perfume da terra

toquei no nada

e para ti foi tudo


Para ti criei todas as palavras

e todas me faltaram

no minuto em que falhei

o sabor do sempre


Para ti dei voz

às minhas mãos

abri os gomos do tempo

assaltei o mundo

e pensei que tudo estava em nós

nesse doce engano

de tudo sermos donos

sem nada termos

simplesmente porque era de noite

e não dormíamos

eu descia em teu peito

para me procurar

e antes que a escuridão

nos cingisse a cintura

ficávamos nos olhos

vivendo de um só olhar

amando de uma só vida


Mia Couto – Para ti

segunda-feira, outubro 08, 2007

Doze moradas do silêncio


Van Gogh - Field of Poppies

Envolver-me na mais obscura solidão das searas e gemer

Amassar com os dentes uma morte íntima

Durante a sonolência balbuciante das papoulas

Prolongar a vida deste verão até ao mais próximo verão

para que os corpos tenham tempo de amadurecer


colher em tuas coxas o sumo espesso

e no calor molhado da noite seduzir as luas

o riso dos jovens pastores desprevenidos...as bocas

do gado triturando o restolho....as correrias inesperadas

das aves rasteiras ....


e crescerei das fecundas terras ou da morte

que sufoca o cio da boca.....

...subirei com a fala ao cimo do teu corpo ausente

transmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes.


Al Berto - Doze moradas do silêncio