segunda-feira, dezembro 20, 2010
sábado, setembro 18, 2010
A viagem do elefante
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Escarranchado na nuca do elefante, com o saco entre as pernas, vestido agora com a sua suja indumentária de trabalho, observava com soberba de vencedor a gente que o olhava de queixo caído, sinal absoluto de pasmo segundo se diz, mas que, em verdade, talvez por absoluto ser, nunca pôde ser observado na vida real. Quando montava o Salomão, a subhro sempre lhe havia parecido que o mundo era pequeno, mas hoje, no cais do porto de Génova, alvo dos olhares de centenas de pessoas literalmente embevecidas pelo espectáculo que lhes estava sendo oferecido, quer com a sua própria pessoa quer com o animal em todos os aspectos tão desmedido que obedecia às suas ordens, fritz contemplava com uma espécie de desdém a multidão, e, num insólito instante de lucidez e relativização, pensou que, bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante.
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in “A viagem do elefante” – José Saramago – páginas 178 e 179
sábado, julho 17, 2010
Memórias das minhas putas tristes
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Nos meus doze anos, ainda de calças curtas e botinhas da escola primária, não pude resistir à tentação de conhecer os andares superiores enquanto o meu pai se debatia numa das suas reuniões intermináveis, e deparei com um espectáculo celestial. As mulheres que malvendiam os seus corpos até ao amanhecer moviam-se pela casa desde as onze da manhã, quando já a canícula do vitral era insuportável, e tinham que fazer a sua vida doméstica andando em pelota por toda a casa enquanto comentavam aos gritos as suas aventuras da noite. Fiquei aterrorizado. A única coisa que me ocorreu foi escapar por onde tinha vindo, quando uma das despidas de carnes maciças cheirando a sabão barato me abraçou pelas costas e me levou pelo ar até ao seu cubículo de cartão sem que eu a pudesse ver no meio da gritaria e dos aplausos das inquilinas em pêlo. Atirou-me de barriga para cima na sua cama para quatro, tirou-me as calças com uma manobra de mestre e encavalitou-se em cima de mim, mas o terror gelado que me ensopava o corpo impediu-me de a receber como um homem. Naquela noite, acordado na cama da minha casa pela vergonha do assalto, não consegui dormir mais de uma hora com as ânsias de a voltar a ver. Mas na manhã seguinte, enquanto os noctívagos dormiam, subi a tremer até ao seu cubículo e acordei-a a chorar aos gritos, com um amor enlouquecido que durou até que o levou sem piedade a ventania da vida real. Chamava-se Castorina e era a rainha da casa.
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in “Memórias das minhas putas tristes” – Gabriel García Márquez - páginas 109 e 110
quarta-feira, junho 16, 2010
Há um toque de fogo
Há um toque de fogo na tua boca. Um veludo que te roça com minúcia pelo rosto, que te aquece e eriça a pele num desassossego dissoluto. Estás ao alcance da noite, onde fluem sôfregos os deleites, onde refulge o orvalho no teu rasto de luz. Lá fora bruxuleiam sombras e escutam-se sons nocturnos. Tudo o resto adormece. E tu estás só. À janela. Estás só e o olhar, que era teu, há muito partiu na nostalgia de um passado sem futuro. Se ao menos palavras houvessem como líricas trovas de amor. Se ao menos bastasse o requebro da voz, qual preciosa renda envolvendo e ornando o teu mundo...
Há um toque de fogo – Jorge Dourado
sexta-feira, junho 04, 2010
a máquina de fazer espanhóis
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Eu ria-me, uma e outra vez, dizendo que era a mais pura ilusão a de a laura ordenar o que quer que fosse aos nossos miúdos já grandes. se eles se iam calando, e lhe beijavam a testa à saída de uma visita a casa, era porque a viam, e a mim também, claramente, como uma tonta amorosa, cheia de defeitos nas ideias, mas amorosa, tão equivocada e falível, mas amorosa, já velhinha e sem préstimo para ser refutada ou reeducada de alguma melhor forma, mas sempre amorosa. a laura zangava-se, tomava um chá e calava-se como quem respondia à altura, exigindo o seu lugar de grande dama, sábia pela dedicação de sempre e pela generosidade e glória da idade. tornava-se engraçada. apertava os lábios numa tremura ligeira e não queria conversas. eu ia tomar chá sozinho, adorando as nossas brigas de namorados. tão imaturos quanto os mais jovens. tão feitos um para o outro quanto possível. já conhecedores do caminho das pedras que, ao fim de uma ou duas horas, nos levaria novamente ao coração um do outro com mimos e promessas de eterno amor.
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e o amor é para heróis. o amor é para heróis.
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in “a máquina de fazer espanhóis” – valter hugo mãe - páginas 22 e 23
quinta-feira, maio 06, 2010
O riso de Deus
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A Ulla foi minha guia, companheira e amada durante aqueles dias que passei em Estocolmo. Como disse, tinha um corpo sem culpas e acho que andava à procura de um latino. Só vi o que lhe faltava naquele dia em que combinámos um passeio de ferryboat e ficamos de nos encontrar no cais, às nove horas da manhã. As nuvens faziam o tecto do dia, como acontece por lá. Quando cheguei ela disse-me:
«Que pena, hoje não há sol…» Eu olhei para ela, dos pés aos olhos e respondi a sorrir: «Não. Eu tenho sol…» Ela ficou emocionada e gaguejou ao falar: «Mas, tu és um poeta!...»
Eu não era nenhum poeta. Eles, por lá, é que não sabiam dizer uns aos outros que eram o sol de cada um.
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in “O riso de Deus” – António Alçada Baptista - pag. 95
sexta-feira, abril 30, 2010
Há-de flutuar uma cidade no crepusculo da vida
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida - Al Berto
quinta-feira, abril 22, 2010
Dispersos
Enquanto dormes constrói-me um rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me. Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.
Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas em direcção ao mar. Dorme e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfaltos.
Para trás ficou a cidade. E tu sabes que a cidade só existe no apanhar um táxi. E perdermo-nos até amanhã – sem querer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.
Amanhã ou enquanto dormes – agora mesmo – vou pensar em ti. Intensamente: até que as horas me doam a pele, e o movimento dos dias passe como aves que perdem o sentido do voo – até que tudo o que me rodeia tome a forma do teu corpo. E em mim circules – quando estendo a mão por dentro da noite e te acordo, no fogo dos meus olhos.
...
in "Dispersos" - Al Berto
sexta-feira, abril 16, 2010
2046
Sempre que as pessoas me perguntam porque deixei 2046 dou-lhes respostas vagas. Antes, quando as pessoas tinham segredos que não queriam compartilhar, subiam a uma montanha, procuravam uma árvore e faziam-lhe um furo. Depois sussurravam o segredo nessa abertura e tapavam-na com barro. Dessa forma, o segredo permaneceria para sempre por descobrir.
Uma vez apaixonei-me por alguém. Após um tempo ela deixou de estar aqui. Fui a 2046. Pensei que poderia lá estar, esperando-me. Mas não pude encontrá-la.
Não consigo parar de me perguntar se ela me amava ou não. Mas nunca descobri a resposta. Talvez a sua resposta fosse como um segredo que ninguém jamais saberia.
Todas as recordações são rastros de lágrimas…
in 2046, de Wong Kar Wai
sábado, abril 10, 2010
Cada homem é uma raça
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Por artes da intrusa, eu desaparecia, intermitente, da existência. Me irrealizava. E quando me apelava, rumo à razão, nem sequer eu chegava a meu cérebro, o austero juiz. Por causa a voz dessa mulher: lembrava o murmurinho das fontes, a sedução do regresso a dantes quando não havia antes. Ela me queria meninar, conduzir-me às primitivas dormências. Avemente, se ninhou em meu peito. Procurava em mim espelho para o suave luar? Deixei-me, sem estatura. Aqueles círculos negros, seus olhos redondos de não terem fim, me surgiam como dois soluços, fossem partes de mim, saudosos, que me espreitassem.
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in “Cada homem é uma raça” – Mia Couto
sexta-feira, março 26, 2010
Todo o espaço é um rosto puro
Aproa o barco na sua linha de azimute. O vestido alvescente surgirá na praia. Reluzindo. Ondulando ao vento como bandeira que assinala o destino. Ela, de braços estendidos ao longo do corpo. Mãos pelo regaço. Enlaçadas. Ansiosas. Olhar fixo no fio do horizonte. Ciciando o seu nome como uma prece. Serenando as águas. Esperando-o… E navega o tempo fantasiando regressos. Sonhando-a. Profundos poentes de tardes douradas no seu olhar. O mar como se viesse num esmerado beijo, envolvendo-lhe languidamente os pés nus. Rodeada de búzios, estrelas-do-mar e pios de gaivotas livres planando a fresca maresia. Ao largo, na solidão do barco, todo o espaço é um rosto puro. Todo o espaço é um desenho com o traço fino e delicado das memórias dos dias que virão.
Todo o espaço é um rosto puro – Jorge Dourado
domingo, março 21, 2010
Variações em tom menor
Para jardim te queria.
Te queria para gume
ou o frio das espadas.
Te queria para lume.
Para orvalho te queria
sobre as horas transtornadas.
Para a boca te queria.
Te queria para entrar
e partir pela cintura.
Para barco te queria.
Te queria para ser
canção breve, chama pura.
Variações em tom menor - Eugénio de Andrade
sábado, março 13, 2010
Este lago não existe
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No pelouro das madrugadas entrego parte da minha ausência. Os percursos vários por onde só sonhos naveguem, por onde só passos leves consigam interiorizar as trevas destas areias escondidas, no raro real de mim, no confuso e díspar silêncio destas horas aqui descritas, devorando com ansiedade as maresias deste lago, onde flutuam os sorrisos dos tempos que me esperam, que busco, os sorrisos a que me dou, levando-me consigo, enriquecendo os membros de todo eu, perfilando-me por estas florestas irreais, por entre as folhagens da vida aqui, as fantasias quase sempre enormes.
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in “Este lago não existe” – Vítor Burity da Silva
domingo, março 07, 2010
domingo, fevereiro 28, 2010
As papoilas vermelhas
Sentados a meu lado enlaçavam as mãos. Ela deslizava serenamente o polegar ao longo do dele. Num movimento contínuo e delicado, como se todo o significado do amor pudesse estar contido nesse gesto. Observei-os e baixei o meu olhar. O meu olhar era um espelho que me reflectia, que me expunha…
A felicidade é tão efémera como um botão de rosa dourada, e eu já não acredito no amor… Ou então passei a viver com receio do amor. Com receio de que tu não existas. Que nunca venhas e me embales com o teu suave canto. E sinto-me tão só… tão cansado de esperar…
Houve um tempo em que as minhas palavras eram tuas. Um tempo em que vivia a doce ilusão de também as tuas serem minhas. E eu acreditava. Em ti.
Ao longe caminhas pelo jardim das papoilas vermelhas. Sorrio para ti mas tu não me vês. Chamo por ti mas tu não me ouves. Tento ir ao teu encontro mas lentamente a tua figura, os teus contornos, esvaecem. Corro para ti, por ti, mas já és jardim, já és as papoilas vermelhas...
As papoilas vermelhas – Jorge Dourado
domingo, fevereiro 21, 2010
Ideia para um autógrafo
o amor é uma casa onde cabem dois corpos
e os gestos entre eles.
imaginemos que não se pode falar
e coloquemos uma ameixa madura no lugar da boca.
qual dos amantes dará o primeiro beijo?
a noite não tem olhos. um corpo sabe do outro corpo
apenas porque cheira. um corpo não sabe quem é o
outro corpo. são um homem e uma mulher.
mas, no silêncio, só há dedos e línguas.
o toque é a linguagem, a magia de ser vento numa carícia.
e assim conversam os amantes.
imaginemos que podem escrever uma palavra.
têm apenas o corpo um do outro. e, no lugar da boca,
ameixas que sangram beijos. quando as línguas se afastam,
a noite abre os olhos com ternura.
os dedos dele penetram o corpo dela.
no momento em que ele vai escrever
uma palavra no seu interior,
nesse exacto momento em que o amor é um gesto circular,
e a voz apenas um fio, ela sussurra:
escreve o teu nome.
in “O ciclo menstrual da noite” – Alice Macedo Campos
segunda-feira, fevereiro 01, 2010
Correntes d'Escritas 2010
Já estamos em Fevereiro, mês das... Correntes d'Escritas! :)
Todas as informações podem ser encontradas aqui.
segunda-feira, janeiro 18, 2010
Cemitério de Pianos
Casámos sozinhos.
Dois sábados antes, caminhámos juntos até à baixa. Não demos a mão, mas os nossos sorrisos eram apenas um para o outro. Entrámos num armazém de montras com modelos vestidos com a última moda. Ela não demorou muito até apontar para um rolo de tecido: fim de estação, fim de peça. Enquanto trocávamos sorrisos, enquanto acreditávamos mais, os metros foram medidos sobre o balcão.
Foi esse tecido, nem demasiado sóbrio, nem demasiado extravagante, que a costureira riscou com giz, cortou, coseu e, através dessa arte, fez um vestido da maneira que a minha mulher imaginou. Foi esse vestido que ela estreou na manhã de segunda-feira em que nos casámos.
Estava tudo tratado, levávamos os papéis na mão, mas entrámos no registo civil sem sabermos. Fui eu que me aproximei do balcão e, quando passou um senhor a carregar uma pilha de papéis junto ao peito, fui eu que lhe disse bom dia. Não respondeu. Continuou indiferente, zangado com o mundo e com todos os arquivos. Seguimo-lo com o olhar durante minutos que passaram nos ponteiros do relógio que estava pendurado na parede.
Num instante que escolheu, o senhor do registo caminhou na minha direcção, penteou o bigode com os dedos, parou-se no outro lado do balcão e, entediado, como se perguntasse, disse:
- Ora, se faz favor…
Estendi-lhe os papéis e expliquei-lhe que vínhamos casar.
Recebeu os papéis, colocou os óculos e demorou-se a ler o impresso que outro senhor, naquele mesmo balcão, me tinha dado havia mais de um mês. Sem dizer nada, ergueu ligeiramente o rosto e olhou-nos por cima dos óculos. Abriu e fechou, abriu e fechou os outros documentos. Sem dizer nada, levantou a tábua que nos dava acesso ao outro lado do balcão. Seguimo-lo por entre secretárias vazias, pilhas de papéis, armários de dossiers, até chegarmos a uma sala branca. Ele sentou-se a uma mesa, tossiu duas vezes e abriu um livro que cobria todo o tampo da mesa. Nós sentámo-nos em duas cadeiras de madeira grossa.
Sem nunca nos dirigir o rosto, o senhor do registo leu algumas frases com pressa, sem pronunciar as palavras completamente: a misturar palavras: um zumbido de palavras. Nas pausas breves em que se deteve, eu disse sim depois de ouvir o meu nome completo e, pouco depois, ela disse sim. O senhor do registo respirou fundo e soprou durante o tempo que levei a tirar a aliança do bolso e a acertá-la no dedo dela. Ficámos a olhar um para o outro e a sorrirmos enquanto terminou as frases que tinha de dizer. Virou o livro na nossa direcção:
- Assine aqui.
Eu assinei e ela assinou. Foi só nesse momento que o senhor do registo reparou que não tínhamos padrinhos.
- Não têm padrinhos?
Sem esperar pela resposta, levantou-se e atravessou a sala com passos curtos e rápidos. Voltou com um livro grosso que tinha a letra B na lombada. Abriu-o numa página e escolheu-me um padrinho e uma madrinha. Abriu-o noutra página e escolheu um padrinho e uma madrinha para ela. Copiou os nomes para a página do outro livro: Bartolomeu, Belarmina, Baltazar, Belmira. Com caligrafias diferentes, assinou por baixo de cada um.
Saímos leves.
Nesse dia, não fui trabalhar. Na manhã seguinte, quando o meu tio chegou à oficina, não me disse nada.
in “Cemitério de pianos” – José Luís Peixoto
Dois sábados antes, caminhámos juntos até à baixa. Não demos a mão, mas os nossos sorrisos eram apenas um para o outro. Entrámos num armazém de montras com modelos vestidos com a última moda. Ela não demorou muito até apontar para um rolo de tecido: fim de estação, fim de peça. Enquanto trocávamos sorrisos, enquanto acreditávamos mais, os metros foram medidos sobre o balcão.
Foi esse tecido, nem demasiado sóbrio, nem demasiado extravagante, que a costureira riscou com giz, cortou, coseu e, através dessa arte, fez um vestido da maneira que a minha mulher imaginou. Foi esse vestido que ela estreou na manhã de segunda-feira em que nos casámos.
Estava tudo tratado, levávamos os papéis na mão, mas entrámos no registo civil sem sabermos. Fui eu que me aproximei do balcão e, quando passou um senhor a carregar uma pilha de papéis junto ao peito, fui eu que lhe disse bom dia. Não respondeu. Continuou indiferente, zangado com o mundo e com todos os arquivos. Seguimo-lo com o olhar durante minutos que passaram nos ponteiros do relógio que estava pendurado na parede.
Num instante que escolheu, o senhor do registo caminhou na minha direcção, penteou o bigode com os dedos, parou-se no outro lado do balcão e, entediado, como se perguntasse, disse:
- Ora, se faz favor…
Estendi-lhe os papéis e expliquei-lhe que vínhamos casar.
Recebeu os papéis, colocou os óculos e demorou-se a ler o impresso que outro senhor, naquele mesmo balcão, me tinha dado havia mais de um mês. Sem dizer nada, ergueu ligeiramente o rosto e olhou-nos por cima dos óculos. Abriu e fechou, abriu e fechou os outros documentos. Sem dizer nada, levantou a tábua que nos dava acesso ao outro lado do balcão. Seguimo-lo por entre secretárias vazias, pilhas de papéis, armários de dossiers, até chegarmos a uma sala branca. Ele sentou-se a uma mesa, tossiu duas vezes e abriu um livro que cobria todo o tampo da mesa. Nós sentámo-nos em duas cadeiras de madeira grossa.
Sem nunca nos dirigir o rosto, o senhor do registo leu algumas frases com pressa, sem pronunciar as palavras completamente: a misturar palavras: um zumbido de palavras. Nas pausas breves em que se deteve, eu disse sim depois de ouvir o meu nome completo e, pouco depois, ela disse sim. O senhor do registo respirou fundo e soprou durante o tempo que levei a tirar a aliança do bolso e a acertá-la no dedo dela. Ficámos a olhar um para o outro e a sorrirmos enquanto terminou as frases que tinha de dizer. Virou o livro na nossa direcção:
- Assine aqui.
Eu assinei e ela assinou. Foi só nesse momento que o senhor do registo reparou que não tínhamos padrinhos.
- Não têm padrinhos?
Sem esperar pela resposta, levantou-se e atravessou a sala com passos curtos e rápidos. Voltou com um livro grosso que tinha a letra B na lombada. Abriu-o numa página e escolheu-me um padrinho e uma madrinha. Abriu-o noutra página e escolheu um padrinho e uma madrinha para ela. Copiou os nomes para a página do outro livro: Bartolomeu, Belarmina, Baltazar, Belmira. Com caligrafias diferentes, assinou por baixo de cada um.
Saímos leves.
Nesse dia, não fui trabalhar. Na manhã seguinte, quando o meu tio chegou à oficina, não me disse nada.
in “Cemitério de pianos” – José Luís Peixoto
quarta-feira, janeiro 06, 2010
Quimera dos poetas
És rio de primordial seiva cingindo-me no marulhar do teu peito.
Murmuras palavras na minha boca, rubros lábios roçando… e roçando-te em mim flutuas.
Digo-te, há um jardim para lá do fim das cores, ali onde surge a tua sombra.
Sou o afago nos teus cabelos. Sou o beijo com que tudo principia, quimera dos poetas.
Em chamas dois tigres irrompem do teu olhar enquanto sorris no meu sorriso e mergulho no teu leito.
Quimera dos poetas – Jorge Dourado
segunda-feira, janeiro 04, 2010
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