segunda-feira, janeiro 18, 2010

Cemitério de Pianos


O Casamento da Virgem - Rafael Sanzio

Casámos sozinhos.
Dois sábados antes, caminhámos juntos até à baixa. Não demos a mão, mas os nossos sorrisos eram apenas um para o outro. Entrámos num armazém de montras com modelos vestidos com a última moda. Ela não demorou muito até apontar para um rolo de tecido: fim de estação, fim de peça. Enquanto trocávamos sorrisos, enquanto acreditávamos mais, os metros foram medidos sobre o balcão.
Foi esse tecido, nem demasiado sóbrio, nem demasiado extravagante, que a costureira riscou com giz, cortou, coseu e, através dessa arte, fez um vestido da maneira que a minha mulher imaginou. Foi esse vestido que ela estreou na manhã de segunda-feira em que nos casámos.
Estava tudo tratado, levávamos os papéis na mão, mas entrámos no registo civil sem sabermos. Fui eu que me aproximei do balcão e, quando passou um senhor a carregar uma pilha de papéis junto ao peito, fui eu que lhe disse bom dia. Não respondeu. Continuou indiferente, zangado com o mundo e com todos os arquivos. Seguimo-lo com o olhar durante minutos que passaram nos ponteiros do relógio que estava pendurado na parede.
Num instante que escolheu, o senhor do registo caminhou na minha direcção, penteou o bigode com os dedos, parou-se no outro lado do balcão e, entediado, como se perguntasse, disse:
- Ora, se faz favor…
Estendi-lhe os papéis e expliquei-lhe que vínhamos casar.
Recebeu os papéis, colocou os óculos e demorou-se a ler o impresso que outro senhor, naquele mesmo balcão, me tinha dado havia mais de um mês. Sem dizer nada, ergueu ligeiramente o rosto e olhou-nos por cima dos óculos. Abriu e fechou, abriu e fechou os outros documentos. Sem dizer nada, levantou a tábua que nos dava acesso ao outro lado do balcão. Seguimo-lo por entre secretárias vazias, pilhas de papéis, armários de dossiers, até chegarmos a uma sala branca. Ele sentou-se a uma mesa, tossiu duas vezes e abriu um livro que cobria todo o tampo da mesa. Nós sentámo-nos em duas cadeiras de madeira grossa.
Sem nunca nos dirigir o rosto, o senhor do registo leu algumas frases com pressa, sem pronunciar as palavras completamente: a misturar palavras: um zumbido de palavras. Nas pausas breves em que se deteve, eu disse sim depois de ouvir o meu nome completo e, pouco depois, ela disse sim. O senhor do registo respirou fundo e soprou durante o tempo que levei a tirar a aliança do bolso e a acertá-la no dedo dela. Ficámos a olhar um para o outro e a sorrirmos enquanto terminou as frases que tinha de dizer. Virou o livro na nossa direcção:
- Assine aqui.
Eu assinei e ela assinou. Foi só nesse momento que o senhor do registo reparou que não tínhamos padrinhos.
- Não têm padrinhos?
Sem esperar pela resposta, levantou-se e atravessou a sala com passos curtos e rápidos. Voltou com um livro grosso que tinha a letra B na lombada. Abriu-o numa página e escolheu-me um padrinho e uma madrinha. Abriu-o noutra página e escolheu um padrinho e uma madrinha para ela. Copiou os nomes para a página do outro livro: Bartolomeu, Belarmina, Baltazar, Belmira. Com caligrafias diferentes, assinou por baixo de cada um.
Saímos leves.
Nesse dia, não fui trabalhar. Na manhã seguinte, quando o meu tio chegou à oficina, não me disse nada.

in “Cemitério de pianos” – José Luís Peixoto

13 comentários:

Vinte e Quatro disse...

Vejo que já começaste a tua epopeia pelo mundo do JLP! Sê benvindo!:)

Muito bom mesmo!

Beijo em dourado

vinteEquatro

JFDourado disse...

É verdade! Passei por uma livraria, não resisti, e voltei na companhia deste livro. :D*

Nirvana disse...

Conheço pouco dele. Muito pouco aliás. Acho que só li um livro (pequeno) dele, Minto até ao dizer que minto. Interessante mas não ao ponto de me fazer ir a correr ver se encontrava mais.
Beijinhos

Berta disse...

olá. passei aqui só para te agradecer. obrigada! ;)*
e até às Correntes que estão aí... :)

Vinte e Quatro disse...

Nirvana, tens que ler a poesia dele! Tens mesmo!

vinteEquatro

JFDourado disse...

Nirvana:
Dele ainda só li uns textos esparsos e folheei este livro. Mas pelo que me dizem, como por exemplo a menina vinteEquatro :), os livros são muito bons. :)*

JFDourado disse...

Lá estarei, Berta. Ou melhor, lá estaremos! :)*

Vinte e Quatro disse...

E são-no de facto.
Experimenta ler "Criança em ruínas" e "A casa, a escuridão". Ter em atenção que este último livro de poesia está "associado" a um romance de nome "Uma casa na escuridão" (foram lançados em simultâneo). A leitura de um não implica a leitura do outro.

Mas pronto! Podes mesmo não gostar!:)

vinteEquatro

Nirvana disse...

Agora estou curiosa, vou ter de ler mais.

Quando são as correntes? Onde?

Bjks

JFDourado disse...

As correntes d'escritas decorrem entre os dias 24 e 27 de Fevereiro, no auditório municipal da Póvoa de Varzim.
Assim que esteja disponível mais informação coloco no blogue :)*

Nirvana disse...

Obrigada ;)

Anónimo disse...

já li este livro há mais de um ano, creio... gostei muito :) um grande beijinho, jorge*

JFDourado disse...

Já o comecei a ler também.
Normalmente utilizo a regra do FIFO para gerir a fila de espera dos livros que tenho a aguardar leitura, mas neste caso,até pela expectativa criada, resolvi fazer batota e passei-o à frente dos outros. :)

Beijinho, Alice.