sexta-feira, setembro 18, 2009

Barroco Tropical


Dog's Head by a Red Tree - Edvard Munch


Desliguei a chorar e adormeci. Na manhã seguinte acordei (acordaram-me) e quando me olhei ao espelho vi uma mulher morta de olhos pousados nos meus. A cabeça latejava-me de dor. Não fosse a dor e eu seria inteiramente aquela mulher morta. Há momentos em que só a dor nos prende à vida. Entrei na banheira, girei a torneira do chuveiro, o mais quente possível, e chorei muito tempo debaixo da água. Para chorar não há como debaixo da água. O ideal é à chuva, mas apenas resulta quando chove muito, e tem de ser num país tropical, bátegas tépidas, grossas e pesadas, dessas que limpam tudo. Se não estiver a chover na altura em que vem o choro, e quase nunca está, então o melhor que uma mulher pode fazer é procurar um bom chuveiro. Chorei com pena de mim, assombrada pelo vazio que encontrei na minha alma. Chorei por não saber onde estava. Troquei a vida pelos palcos. Achei que podia fugir do amor. Enganei-me. O amor é um cão velho e tinhoso, porém obstinado, que nunca desiste. Abandonamo-lo no mato, para morrer de fome e de sede, para morrer de frio, porque queremos que morra, e dias depois ele está de regresso a casa, a abanar a cauda. Enxotamo-lo à pedrada, mas volta sempre.


in “Barroco Tropical” – José Eduardo Agualusa

6 comentários:

Nirvana disse...

Ainda não li este :(.
De Agualusa só li dois livros, o vendedor de passados e as mulheres de meu pai. Gostei bastante de ambos. Este está ali à espera.
Disse para mim mesma que isto de deixar livros a meio é um péssimo hábito, assim como ler os primeiros dois e o último capítulo. Tenho de acabar o que estou a ler...está a custar, mas está quase.
Resisti à tentação de ir ler uma página ou outra, mas pela tua amostra, vale a pena.
Gostei do cão velho e tinhoso e fiquei com saudades de uma chuva a valer...leia-se muita, mas de curta duração :).

Bjks
(Às vezes também me acontece isso, vontade de chorar quando me acordam de manhã ;)

JFDourado disse...

Agualusa é um dos meus escritores preferidos.
Inclusive já tive o prazer de o cumprimentar e trocar umas breves palavras enquanto ele me assinava um dos seus livros (O vendedor de passados) durante um correntes d'escritas, cá na Póvoa. Grandes amigos portanto! ;)
Gosto muito da forma como ele escreve. Se gostaste dos outros também vais gostar deste.
Ah, ler os dois primeiros capítulos de um livro e depois ler o último parece-me um sacrilégio! ;)

Bjks

Nirvana disse...

:)
Só faço isso quando são um pouco digamos que difíceis de ler (chatos) ;), mas estou a acabar com esse vício.
Finalmente acabei o que estava a ler. Ufa! Indicado por uma amiga, mas não gostei muito. Para mim ler sempre foi um prazer e parecia que se estava a transformar quase uma obrigação, mas comecei a ler outro hoje que está a ser difícil parar :))

JFDourado disse...

Eu também já deixei alguns a meio (não foram muitos, é certo). Estou a lembrar-me, por exemplo, do "Terra sonâmbula", de Mia Couto. Era a primeira vez que lia um livro dele. Acho que na altura não estava preparado para ler um livro assim. Lembro-me que não estava a entender nada da história, era tudo uma grande confusão... :) Passado uns tempos voltei a pegar no livro e já foi tudo diferente. Aquela prosa a roçar a poesia... Passou a ser um dos meus livros preferidos e o Mia Couto um dos meus escritores de eleição. Mas, de facto, há livros que não merecem ser lidos (os tais chatos e dos quais nada de útil se retira). Nem valem o papel em que estão impressos.

Bjks

Nirvana disse...

Completamente de acordo contigo em relação a Agualusa e a este livro.
Quando houver mais correntes d'escritas por aí, avisa!
Bjks

JFDourado disse...

Se bem me recordo as Correntes d'Escritas são em Fevereiro. Por essa altura coloco aqui o lembrete.

Bjs