quarta-feira, agosto 26, 2009

Leite derramado


Amor & Psyche - Edvard Munch


No dia seguinte minha mãe me perguntou se os pais de Matilde lhe consentiam estar a sós comigo em casa, toda tarde depois das aulas. Mal sabia ela que, de noite, eu espreitava da minha janela de fundos a hora de Matilde pisar a relva do jardim na ponta dos pés, entre as amendoeiras e a casa dos empregados. Eu descia correndo e lhe abria a porta da cozinha, que Matilde apenas ultrapassava. Encostava-se na parede da cozinha, a respiração curta, e me arregalava os olhos negros. Em silêncio nos olhávamos por cinco, dez minutos, ela com as mãos na altura dos quadris, agarrando, torcendo a própria saia. E corava pouco a pouco até ficar bem vermelha, como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol. Via seus lábios se entreabrirem, e acima deles brotavam umas gotículas de suor, enquanto suas pálpebras devagar cediam. Enfim eu me jogava contra o corpo dela, pressionava o corpo dela contra a parede da cozinha, sem contatos de pele, e sem avanços de mãos ou de pernas, por algum acordo jamais expresso. Com meu tronco eu a esmagava, quase, até que ela dizia, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremia inteiro, levando o meu a tremer junto.


in “Leite derramado” – Chico Buarque

8 comentários:

Ana disse...

...glup...pois, me parece muito bem... já foi para a lista ;) eheh *

addiragram disse...

Está já na lista.

Nirvana disse...

Muito bonita, a passagem que transcreveste, mas tenho de confessar que não foi dos livros que mais me prendeu.
(É apenas a minha opinião. Apesar de gostar muito de ler, de ler (quase) tudo que me aparece à frente e gastar grande parte do meu orçamento em livros, não sou uma expert na matéria).

JFDourado disse...

Confesso que quando o comecei a ler estava com um pé atrás. Ainda não tinha lido nada de Chico Buarque e tinha um bocado de receio de que o português do Brasil pudesse prejudicar a minha opinião acerca do livro. De facto, no início, senti essas pequenas/grandes diferenças. Mas são precisamente essas diferenças que fazem do português uma língua tão rica e, neste caso concreto, que lhe dão um toque mais adocicado e descontraído. Com o avançar das páginas acabei por me esquecer desse pormenor e li-o num abrir e fechar de olhos. Gostei da estrutura narrativa e das estórias, algumas bem hilariantes, que a personagem principal vai contando no relato das memórias dos seus 100 anos.
Fica, sem dúvida, com o meu prestigiado selo de recomendado! ;)

kissmyname disse...

Acabo de descobrir este blog e já estou perdida por tudo o que encontro aqui. Parabéns, é mesmo fantástico!

moriana disse...

está arrumadinho na mesa de cabeceira, será para breve :)

Nirvana disse...

JFD, eu não disse que não gostei, apenas que não foi dos livros que mais gostei ;). Agora, se vale a pena ler, vale. Comprei-o precisamente por ser da autoria de Chico Buarque. Se calhar fiz o contrário de ti. Coloquei demasiada expectativa no livro antes de o começar a ler.
Como em tudo, a beleza* está na diversidade, até de opiniões, alors. Seguramente entendes mais de livros do que eu. Para te dizer a verdade, não entendo nada. Apenas gosto ou não gosto.Gosto muito ou mais ao menos.
Por acaso li-o todo ;). Às vezes começo a ler um livro e acabo por desistir, quando não gosto. Não acontece muito, mas ainda acontece.

*E, por falar em beleza, para quando mais umas palavras da autoria de JFD?
:)

JFDourado disse...

O JFD, de momento, sofre de preguicite aguda! ;)