quarta-feira, outubro 15, 2008

As mulheres do meu Pai


Embondeiro - Vicente


Alguém veio – um decrépito Volkswagen com dois militares – enquanto Faustino Manso cantava Luanda ao Crepúsculo. O militar que ia ao volante era alto e desengonçado; o outro, baixo e roliço, com um farto bigode em forma de vassoura. Dom Quixote saiu do carro e espreguiçou-se. Sancho Pança saiu também, preguiçosamente, fez menção de arrumar a enorme barriga dentro das calças, desistiu, aproximou-se do embondeiro e urinou com fragor. Dom Quixote admoestou-o:
- Capitão, olhe a menina!
Estendeu-me a mão:
- Acidente?
Expliquei-lhe o que tinha acontecido. Dom Quixote abanou a comprida cabeça descarnada, pesaroso.
- Não podem ficar aqui, assim em meio a tantíssima noite. Não sobretudo a menina, uma moça tão delicada. Estamos em território hostil. A guerra acabou, sim, mas há ainda por esses matos adentro uma meia dúzia de bandidos despardalados. Em noventa e nove, sabe?, eu quase morri aqui. Esse embondeiro foi que me salvou.
- Ia morrendo numa emboscada?
- Não senhora. Foi a minha esposa que quase me matou…
- A sua esposa?
- Afirmativo. Eu estava a namorar, no interior da viatura, com uma moça de Benguela chamada Mil Flores, uma mulata clara… assim como a menina… Estava eu já, como dizer?, totalmente operacional, quando a minha esposa apareceu. Quem nos denunciou foi, segundo apurei mais tarde, uma outra namorada minha, muito afligida de ciúmes, essa chamada Anunciação. Maria Rita, a minha esposa, apareceu armada com uma catana. Não a vi chegar. Só dei por ela no instante em que partiu o vidro do lado do condutor. Mil Flores abriu a porta do outro lado e fugiu a correr, em toda a sua nudez, que era linda de se ver, em direcção ao Lobito. Deus fez-me assim como vê, magro e ágil, tipo cabrito, mas estou velho, a minha mulher é muito mais jovem, tem mais fôlego, era uma questão de tempo até me apanhar. E se me apanhasse, zás!, lá ficava eu sem armamento, então subi no embondeiro.
- Não é possível! Como conseguiu?
- Como voam os gatos?
- Os gatos não voam!
- Não voam lá na Europa, menina. Aqui voam! Ponha um galgo atrás de um gato a ver se ele não voa. Um gato aperreado trepa em qualquer árvore, mesmo que seja eucalipto. Em dependendo do galgo, galga inclusive uma parede lisa. O certo é que voei, subi. Fiquei lá em cima, nu em pêlo, mais em pele do que em pêlo, aliás, que pêlos não tenho muitos, até que caiu a noite e Maria Rita se cansou e foi embora.


in “As mulheres do meu Pai” – José Eduardo Agualusa



12 comentários:

moça disse...

Como diria o meu coleguinha angolano "vou-te fazer uma proposta honesta"! Que tal encheres a mala com livros, viajares até Benguela, e deixar cá ficar a mala? É que eu só trouxe 2 livrinhos... e ainda assim ultrapassei o limite de bagagem :S

moça disse...

... confesso que não tinha lido o post... agora que li é que vi que fala de mim!!! :D
Como se diz na minha terra, sou mais conhecida que o tremoço!!!
Mas mais uma razão para vires até cá: vens conhecer os destinos dos livros que lês! :P

JFDourado disse...

Uma proposta aliciante de facto! E, pensando bem, até teria um certo toque poético… Seria uma espécie de missão cultural na terra da acácias rubras, um voo Póvoa - Benguela com asas do silêncio…

;)

Claudia Sousa Dias disse...

ah...tens aqui vários livros que estão naquela minha prateleira do "livros não lidos" ao todo 42...

perdi a cabeça nas últimas feiras onde apanhei várias obras primas a 1 euro, 2 e cinco euros...


:-)))


CSD

JFDourado disse...

42! a prateleira deve estar cheia :)

Estes que aqui menciono levam o meu selo de recomendado e de certeza que vais gostar de os ler.

:)

addiragram disse...

Adorei este livro,por isso soube-me bem re-encontrá-lo!

JFDourado disse...

o livro, de facto, é mesmo muito muito bom, e este pedacinho então... quando li isto parecia um maluquinho a rir às gargalhadas!

Sorvete de Framboesas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sorvete de Framboesas disse...

Este livro foi o meu primeiro contacto com o Agualusa e adorei. No entanto, a meu trecho preferido é:

"Lembro-me em menino de acompanhar a minha avó ao mercado. Um dos vendedores sofria de elefantíase. Eu olhava para o pé dele, um trambolho imenso, e invejava-o. Acreditava firmemente que o homem estava em transição para elefante. Parecia-me aquilo um belo destino. A humanidade horrorizava-me.

Perguntavam-me:
- O que queres ser quando fores grande?
E eu, sem hesitar:
- Elefante!

Depois cresci e conformei-me."

in As Mulheres do Meu Pai, José Eduardo Agualusa

JFDourado disse...

:)

também gosto muito de "o vendedor de passados". É mais um livro bem ao meu gosto. Com um bom enredo e bastante divertido!

Maria disse...

É bastante engraçado é. Mas este, pelo menos pelos excertos, não parece ficar atrás. Ri-me bastante com o excerto do vendedor com elefantíase.
:)

JFDourado disse...

Então está decidido. Também vou emprestar-te este!

:)