terça-feira, junho 10, 2008
Alma
…Mas era ali, na Igreja, ao fim do dia, com a luz coada pelos vitrais, as imagens da Virgem e do Senhor dos Passos, os quadros da Paixão, era ali, recitado em coro, que o Padre-nosso parecia música. Sobretudo quando em mim se fixavam os olhos azuis de Maria do Ó, filha de um sargento que frequentava a Escola Central, instalada no quartel da vila por influência de meu avô Geraldo Pais, no tempo da Primeira República.
Ela era de Portimão e eu, propenso já ao romantismo, ao devaneio, senão mesmo ao desvario, pensava: moira encantada. Não sei se pelo nome, se pelo azul dos olhos, que era para mim a cor do sul, o certo é que ela me inspirou, não direi a primeira paixão, que só depois viria a saber o que era, mas o primeiro encantamento.
Mandava-lhe bilhetinhos pela minha irmã, ela respondia com outros, às vezes só com risinhos e olhos meigos, ao fim da tarde, sentada na Igreja, durante o catecismo. Às tantas já ninguém prestava atenção à catequista: olhavam ora para ela ora para mim, havia risinhos das raparigas, os rapazes faziam-lhes caretas, Nicolau, no meio da ladainha, começava a dizer baixinho, ao mesmo ritmo: A Maria do Ó só olha pró Duarte, a Maria do Ó só olha pró Duarte.
Às vezes eu respondia-lhe com uma canelada, ele não se ficava e lá vinha o Padre Aníbal, com a batina abotoada de alto a baixo e as botas a ranger, repor a ordem nas aulas de catecismo.
Uma tarde sentei-me com ela nos degraus do Cruzeiro, contei-lhe que os namorados ciganos faziam juramentos de sangue e perguntei-lhe se ela não queria fazer um comigo. Ela acenou que sim, muito corada, e o meu coração bateu descompassadamente…
in “Alma” – Manuel Alegre
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5 comentários:
:D gosto tanto, mas tanto deste livro... e este pedaço é delicioso *
:) apesar de conhecer mal a obra do autr, nunca me desiludiu manuel alegre. e este excerto recorda-me a minha infância, os pactos de sangue que eu fazia na mata em frente à casa dos meus avôs e que guardo num canto secreto do coração até hoje. obrigada por ese post, jorge. um grande beijinho *
Este livro é muito autêntico. Portugal em poesia.
Um beijo e obrigada,
Lis
É sempre muito bom vir aqui ler-te...
Beijo terno
Uma bonita e deliciosa escolha. Relembrei a sua leitura. Um beijinho para ti.
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