quinta-feira, maio 29, 2008

Terra Sonâmbula

Valente Malangatana - Sem título

- Por que mentiste sobre mim?, lhe perguntei.
- Porque não queria que fosses.
- Mas eu não vou embora, Carolinda.
- Não acredito, isto não é terra de ninguém ficar. Vais partir, tu não pertences aqui.
- Mas por que razão me soltas, então?
- Para que vás para tão longe que pareças impossível. E agora vai-te e não voltes nunca mais.
Depois, me empurrou com suavidade. Mas eu resisti, me demorando junto dela. Assim, de face em riste, ela me surgia exclusivamente única, triste como pétala depois da flor. Meu peito se encheu. Eu sei que em cada mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava essa doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento confirmava: o melhor da vida é o que não há-de vir.

in “Terra Sonâmbula” - Mia Couto


segunda-feira, maio 12, 2008

único poema

Corinna Button - Storm brewing II


no teu corpo é que o poema faz amor,

a dor das casas, o cheiro húmido das pétalas, as flores mais escuras.

quando uma nuvem te atravessa, é que o punhal fere o silêncio,

a morte dança, o mar começa.

no teu corpo é que as palavras carne e água são de carne e água,

os seios bússolas, a noite mágoa.

se uma faúlha acende um poço de carvão, a vontade irrompe o cavalo do sangue.

é a tua pele que abre os olhos da chuva, a mão do vento, o dia claro.

se um beijo desperta a ira dos relâmpagos, a manhã desce ao sal da língua, o tempo pára.

sobre um novelo de palha, os ovos estalam nas estrias delicadas.

troveja fortemente se o céu diz o teu nome.



Alice Macedo Campos – único poema - in "o ciclo menstrual da noite"


quinta-feira, maio 01, 2008

C

Gustav Klimt - Biscie D'Acqua

No meio da terra afastarei
as esmeraldas para te ver
e tu estarás copiando as espigas
com uma pluma de água mensageira.

Que mundo! Que profunda salsa!
Que navio navegando na doçura!
E tu talvez e eu talvez topázio!
E não haverá separação nos sinos.

E haverá apenas o ar livre,
as maçãs levadas pelo vento,
o suculento livro na ramada,

lá onde os cravos respiram
criaremos uma roupagem que resista
à eternidade de um beijo vitorioso.


Pablo Neruda – Cem sonetos de amor - C