sexta-feira, abril 30, 2010
Há-de flutuar uma cidade no crepusculo da vida
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu… como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos… sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta… dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca do mar ao fundo da rua
assim envelheci… acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no
coração, mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade
Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida - Al Berto
quinta-feira, abril 22, 2010
Dispersos
Enquanto dormes constrói-me um rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me. Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.
Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas em direcção ao mar. Dorme e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfaltos.
Para trás ficou a cidade. E tu sabes que a cidade só existe no apanhar um táxi. E perdermo-nos até amanhã – sem querer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.
Amanhã ou enquanto dormes – agora mesmo – vou pensar em ti. Intensamente: até que as horas me doam a pele, e o movimento dos dias passe como aves que perdem o sentido do voo – até que tudo o que me rodeia tome a forma do teu corpo. E em mim circules – quando estendo a mão por dentro da noite e te acordo, no fogo dos meus olhos.
...
in "Dispersos" - Al Berto
sexta-feira, abril 16, 2010
2046
Sempre que as pessoas me perguntam porque deixei 2046 dou-lhes respostas vagas. Antes, quando as pessoas tinham segredos que não queriam compartilhar, subiam a uma montanha, procuravam uma árvore e faziam-lhe um furo. Depois sussurravam o segredo nessa abertura e tapavam-na com barro. Dessa forma, o segredo permaneceria para sempre por descobrir.
Uma vez apaixonei-me por alguém. Após um tempo ela deixou de estar aqui. Fui a 2046. Pensei que poderia lá estar, esperando-me. Mas não pude encontrá-la.
Não consigo parar de me perguntar se ela me amava ou não. Mas nunca descobri a resposta. Talvez a sua resposta fosse como um segredo que ninguém jamais saberia.
Todas as recordações são rastros de lágrimas…
in 2046, de Wong Kar Wai
sábado, abril 10, 2010
Cada homem é uma raça
…
Por artes da intrusa, eu desaparecia, intermitente, da existência. Me irrealizava. E quando me apelava, rumo à razão, nem sequer eu chegava a meu cérebro, o austero juiz. Por causa a voz dessa mulher: lembrava o murmurinho das fontes, a sedução do regresso a dantes quando não havia antes. Ela me queria meninar, conduzir-me às primitivas dormências. Avemente, se ninhou em meu peito. Procurava em mim espelho para o suave luar? Deixei-me, sem estatura. Aqueles círculos negros, seus olhos redondos de não terem fim, me surgiam como dois soluços, fossem partes de mim, saudosos, que me espreitassem.
…
in “Cada homem é uma raça” – Mia Couto
Subscrever:
Mensagens (Atom)