Casámos sozinhos.
Dois sábados antes, caminhámos juntos até à baixa. Não demos a mão, mas os nossos sorrisos eram apenas um para o outro. Entrámos num armazém de montras com modelos vestidos com a última moda. Ela não demorou muito até apontar para um rolo de tecido: fim de estação, fim de peça. Enquanto trocávamos sorrisos, enquanto acreditávamos mais, os metros foram medidos sobre o balcão.
Foi esse tecido, nem demasiado sóbrio, nem demasiado extravagante, que a costureira riscou com giz, cortou, coseu e, através dessa arte, fez um vestido da maneira que a minha mulher imaginou. Foi esse vestido que ela estreou na manhã de segunda-feira em que nos casámos.
Estava tudo tratado, levávamos os papéis na mão, mas entrámos no registo civil sem sabermos. Fui eu que me aproximei do balcão e, quando passou um senhor a carregar uma pilha de papéis junto ao peito, fui eu que lhe disse bom dia. Não respondeu. Continuou indiferente, zangado com o mundo e com todos os arquivos. Seguimo-lo com o olhar durante minutos que passaram nos ponteiros do relógio que estava pendurado na parede.
Num instante que escolheu, o senhor do registo caminhou na minha direcção, penteou o bigode com os dedos, parou-se no outro lado do balcão e, entediado, como se perguntasse, disse:
- Ora, se faz favor…
Estendi-lhe os papéis e expliquei-lhe que vínhamos casar.
Recebeu os papéis, colocou os óculos e demorou-se a ler o impresso que outro senhor, naquele mesmo balcão, me tinha dado havia mais de um mês. Sem dizer nada, ergueu ligeiramente o rosto e olhou-nos por cima dos óculos. Abriu e fechou, abriu e fechou os outros documentos. Sem dizer nada, levantou a tábua que nos dava acesso ao outro lado do balcão. Seguimo-lo por entre secretárias vazias, pilhas de papéis, armários de dossiers, até chegarmos a uma sala branca. Ele sentou-se a uma mesa, tossiu duas vezes e abriu um livro que cobria todo o tampo da mesa. Nós sentámo-nos em duas cadeiras de madeira grossa.
Sem nunca nos dirigir o rosto, o senhor do registo leu algumas frases com pressa, sem pronunciar as palavras completamente: a misturar palavras: um zumbido de palavras. Nas pausas breves em que se deteve, eu disse sim depois de ouvir o meu nome completo e, pouco depois, ela disse sim. O senhor do registo respirou fundo e soprou durante o tempo que levei a tirar a aliança do bolso e a acertá-la no dedo dela. Ficámos a olhar um para o outro e a sorrirmos enquanto terminou as frases que tinha de dizer. Virou o livro na nossa direcção:
- Assine aqui.
Eu assinei e ela assinou. Foi só nesse momento que o senhor do registo reparou que não tínhamos padrinhos.
- Não têm padrinhos?
Sem esperar pela resposta, levantou-se e atravessou a sala com passos curtos e rápidos. Voltou com um livro grosso que tinha a letra B na lombada. Abriu-o numa página e escolheu-me um padrinho e uma madrinha. Abriu-o noutra página e escolheu um padrinho e uma madrinha para ela. Copiou os nomes para a página do outro livro: Bartolomeu, Belarmina, Baltazar, Belmira. Com caligrafias diferentes, assinou por baixo de cada um.
Saímos leves.
Nesse dia, não fui trabalhar. Na manhã seguinte, quando o meu tio chegou à oficina, não me disse nada.
in “Cemitério de pianos” – José Luís Peixoto
segunda-feira, janeiro 18, 2010
quarta-feira, janeiro 06, 2010
Quimera dos poetas
És rio de primordial seiva cingindo-me no marulhar do teu peito.
Murmuras palavras na minha boca, rubros lábios roçando… e roçando-te em mim flutuas.
Digo-te, há um jardim para lá do fim das cores, ali onde surge a tua sombra.
Sou o afago nos teus cabelos. Sou o beijo com que tudo principia, quimera dos poetas.
Em chamas dois tigres irrompem do teu olhar enquanto sorris no meu sorriso e mergulho no teu leito.
Quimera dos poetas – Jorge Dourado
segunda-feira, janeiro 04, 2010
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