segunda-feira, agosto 28, 2006

O amor, quando se revela


The little White Girl - James Whistler

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...


Fernando Pessoa - O amor, quando se revela

segunda-feira, agosto 21, 2006

Mulher magnólia


My sweet rose - John Waterhouse


Pensamentos cativos em mordaças de pétalas rutilantes

Ninfa florida no jardim do sonho escuro

Perdido em suaves perfumes procuro

Uma alvidúlcida luz entre sombras tristes.


Mulher magnólia, entrega a tua seiva de mel quente

Que tão amargo e frio tenho o coração

Liberta com o teu beijo premente

Quem aguarda a flor da paixão.


JFDourado - Mulher magnólia - 21/08/2006

sábado, agosto 12, 2006

Anjo és


Young girls at the seaside - Pierre Puvis de Chavannes


Anjo és tu, que esse poder

Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E a minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher
Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c’roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d’amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é viva e é bela,
Mas a luz não tem. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?
Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?
Em mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu, ou és mulher?

Almeida Garrett - Anjo és

domingo, agosto 06, 2006

A mulher que passa


Madonna - Edvard Munch


Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacífica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinícius De Moraes - A mulher que passa

sábado, agosto 05, 2006

A dança fingida


Dance at Bougival - Renoir

Breves minutos uniram o improvável par numa dança fingida, eu desajeitado e inseguro com a minha máscara alva, e tu, uma rosa florida em vestido encarnado de cetim.

Como queria encontrar aquele conjunto mágico de palavras capazes de te revelar o que o meu coração sente. Que te amo, sem reservas, desde aquela primeira vez em que os nossos olhares se cruzaram, e tudo passou a fazer sentido. O permanente aperto no estômago porque tu estás sempre presente em mim. Se fecho os meus olhos vejo em fundo preto o contorno do teu rosto a branco. Se os abro, lá estás tu à minha frente, com o teu sorriso sereno, os cabelos pelos ombros, olhos meigos que transmitem segurança, e esses teus lábios de mil promessas que anseio um dia beijar. Amo a luz que irradias, a alegria de viver contagiante, a simplicidade que cativa, a voz doce, o teu perfume, o suave balanço do teu andar, os contornos do teu corpo, as tuas mãos delicadas que sonho enlaçar nas minhas…

As palavras ficaram perdidas no meu pensamento, os breves minutos passaram, a música terminou, e deixamos a nossa dança fingida tal e qual como a iniciamos, eu desajeitado e inseguro com a minha máscara alva, e tu, uma rosa florida em vestido encarnado de cetim.

JFDourado - A dança fingida - 05/08/2006

sexta-feira, agosto 04, 2006

XLIV


Musician Angel - Rosso Fiorentino


Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda - Cem Sonetos de Amor - XLIV