quarta-feira, março 16, 2011

A Relíquia


Jacqueline with Flowers - Pablo Picasso


Não resisti: descalço, em ceroulas, saí ao corredor adormecido; e cravei à fechadura da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente – que quase receava feri-la com a devorante chama do seu raio sanguíneo… Enxerguei num círculo de claridade uma toalha caída na esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ela atravessasse, nua e esplêndida, esse disco escasso de luz – quando senti de repente, por trás, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, misérrimo Raposo, não podia escapar. De um lado, estava ele, enorme. Do outro, o topo do corredor, maciço.
Vagarosamente, calado, com método, o hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas… Eu rugi: «Bruto!» Ele ciciou: «Silêncio!» E outra vez, tendo-me ali cercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, lívido, em ceroulas, disse-lhe com imensa dignidade:
- Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do túmulo do Senhor, e eu não querer escândalos por causa da minha tia… Mas se estivéssemos em Lisboa, fora de portas, num sítio que eu cá sei, comia-lhe os fígados! Nem você sabe do que se livrou. Vá com esta, comia-lhe os fígados!
E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções de arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.


in “A Relíquia” – Eça de Queirós – Páginas 99 e 100