quarta-feira, outubro 29, 2008

O vendedor de passados


Adão e Eva - Edvard Munch

Fausto Bendito Ventura fez-se alfarrabista por distracção. Orgulhava-se de nunca ter trabalhado na vida. Saía de manhã cedo a passear pela baixa, malembe-malembe, muito aprumado no seu fato de linho, chapéu de palha, laço e bengala, cumprimentando amigos e conhecidos com um leve toque do dedo indicador na aba do chapéu. Se acaso se cruzava com alguma senhora do seu tempo, dedicava-lhe a luz de um sorriso galante. Soprava: bom dia, poesia. Atirava piropos apimentados às empregadas dos bares. Conta-se (contou-me Félix) que um dia um invejoso o provocou:
«Afinal, o que faz o senhor nos dias úteis?»
A réplica de Fausto Bendito, todos os meus dias são inúteis, cavalheiro, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em iludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da independência, ainda não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio, e o portão estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas para ter livre acesso aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao acaso no forte soalho do salão.

Partilho com Félix Ventura um amor (no meu caso sem esperança) pelas palavras antigas. A Félix Ventura quem o educou neste sentimento foi, primeiro, o pai, Fausto Bendito, e a seguir um velho professor, dos primeiros anos do liceu, sujeito de modos melancólicos, alto, e de tal forma delgado que parecia caminhar sempre de perfil, como uma gravura egípcia. Gaspar, assim se chamava o professor, comovia-se com o desamparo de certos vocábulos. Dava com eles abandonados à sua sorte, nalgum lugar ermo da língua, e procurava resgatá-los. Usava-os com ostentação e persistência, o que consternava uns e desconcertava outros. Creio que triunfou. Os seus alunos começaram por utilizar esses vocábulos, primeiro por troça, e a seguir como uma gíria íntima, uma tatuagem tribal, que os fazia distintos da restante juventude. Hoje, assegurou-me Félix, são ainda capazes de se reconhecerem uns aos outros, mesmo quando nunca se viram antes, às primeiras palavras.
«Ainda tremo de cada vez que ouço alguém dizer edredom, um galicismo hediondo, em vez de frouxel, que a mim me parece, e estou certo que você concordará, palavra muito bela e muito nobre. Mas já me conformei com sutiã. Estrofião tem uma outra dignidade histórica. Soa, todavia, um pouco estranho – não concorda?»

in "O vendedor de passados" – José Eduardo Agualusa

quarta-feira, outubro 15, 2008

As mulheres do meu Pai


Embondeiro - Vicente


Alguém veio – um decrépito Volkswagen com dois militares – enquanto Faustino Manso cantava Luanda ao Crepúsculo. O militar que ia ao volante era alto e desengonçado; o outro, baixo e roliço, com um farto bigode em forma de vassoura. Dom Quixote saiu do carro e espreguiçou-se. Sancho Pança saiu também, preguiçosamente, fez menção de arrumar a enorme barriga dentro das calças, desistiu, aproximou-se do embondeiro e urinou com fragor. Dom Quixote admoestou-o:
- Capitão, olhe a menina!
Estendeu-me a mão:
- Acidente?
Expliquei-lhe o que tinha acontecido. Dom Quixote abanou a comprida cabeça descarnada, pesaroso.
- Não podem ficar aqui, assim em meio a tantíssima noite. Não sobretudo a menina, uma moça tão delicada. Estamos em território hostil. A guerra acabou, sim, mas há ainda por esses matos adentro uma meia dúzia de bandidos despardalados. Em noventa e nove, sabe?, eu quase morri aqui. Esse embondeiro foi que me salvou.
- Ia morrendo numa emboscada?
- Não senhora. Foi a minha esposa que quase me matou…
- A sua esposa?
- Afirmativo. Eu estava a namorar, no interior da viatura, com uma moça de Benguela chamada Mil Flores, uma mulata clara… assim como a menina… Estava eu já, como dizer?, totalmente operacional, quando a minha esposa apareceu. Quem nos denunciou foi, segundo apurei mais tarde, uma outra namorada minha, muito afligida de ciúmes, essa chamada Anunciação. Maria Rita, a minha esposa, apareceu armada com uma catana. Não a vi chegar. Só dei por ela no instante em que partiu o vidro do lado do condutor. Mil Flores abriu a porta do outro lado e fugiu a correr, em toda a sua nudez, que era linda de se ver, em direcção ao Lobito. Deus fez-me assim como vê, magro e ágil, tipo cabrito, mas estou velho, a minha mulher é muito mais jovem, tem mais fôlego, era uma questão de tempo até me apanhar. E se me apanhasse, zás!, lá ficava eu sem armamento, então subi no embondeiro.
- Não é possível! Como conseguiu?
- Como voam os gatos?
- Os gatos não voam!
- Não voam lá na Europa, menina. Aqui voam! Ponha um galgo atrás de um gato a ver se ele não voa. Um gato aperreado trepa em qualquer árvore, mesmo que seja eucalipto. Em dependendo do galgo, galga inclusive uma parede lisa. O certo é que voei, subi. Fiquei lá em cima, nu em pêlo, mais em pele do que em pêlo, aliás, que pêlos não tenho muitos, até que caiu a noite e Maria Rita se cansou e foi embora.


in “As mulheres do meu Pai” – José Eduardo Agualusa