segunda-feira, julho 07, 2008
Venenos de Deus, Remédios do Diabo
…O médico estranha a sua própria ansiedade. Naquele lugar sem outra evasão, o relato dos sonhos de Bartolomeu era uma espécie de matinée de cinema. O doente desenrola a voz numa poalha luminosa e o português vai-se lembrando da sua cidade, dos rumores confusos provenientes das ruas atafulhadas de carros e gentes. E recorda Deolinda, o encontro fugaz e fabuloso, sob o fundo de luz branca de Lisboa.
Quando Sidónio volta a dar conta do tempo, já Bartolomeu desnovela: «…chovia aquela noite…».
- Chovia no sonho?
- Oh, Doutor, o senhor sofre mesmo de poesias: então chove nos sonhos?
- Eu, poesias?
- Não é de agora. O senhor já anda poetando há muito tempo. Por exemplo, quando o senhor me aconselha para eu cortar nas bebidas…
- Acha que isso é poesia?
- Então não é? Corta-se na bebida? A gente pode cortar nas árvores, cortar na roupa, cortar sei lá onde, mas diga lá, Doutor, que faca corta um líquido? Só a faca da poesia.
- Você é que anda muito inspirado nestes dias, meu caro Bartolomeu.
- Ah, é verdade! Há ainda mais outra: o senhor diz que beber me faz gota. Sabendo os litros que bebo, Doutor, é preciso muita poesia para falar em gota…
Que também ele, Bartolomeu Sozinho, fora dado a poesias. E pela centésima vez reabre a gaveta para reler num bloco de notas algo que escrevera sobre tempos e pensamentos. Avança para o centro do aposento e faz de conta que vai lendo um invisível manuscrito:
«Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.» A mão tomba-lhe num inesperado abatimento e Bartolomeu sacode a cabeça como surpreso pela sua própria criação.
- Munda diz que isto não é da minha autoria. Mas eu escrevi isto a bordo do Infante D. Henrique. Eu lá também sofri de poesia.
O português contempla o velho com comiseração. A inexistente folha de papel que lhe pende do braço pesa mais do que ele pode suportar. E ele mesmo, Sidónio Rosa, se sente subitamente envelhecido. A idade é uma repentina doença: surge quando menos se espera, uma simples desilusão, um desacato com a esperança. Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós.
…
in “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” – Mia Couto
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7 comentários:
Bom dia!
Como sempre, uma escolha de mestre :)
Beijo terno
:)
[já o título do livro é poesia]
O mestre sorri e agradece o vosso comentário. :D
ainda não pude adquirir este livro e adorei o excerto que publicaste, obrigada por mais esta prosa à tua escolha, jorge. um grande beijinho.
Tenho uma surpresa para ti no rendez-vou a propósito deste e do anterior livro do Mia!
BJ
CSD
Alice: Quando for possível lê-o que vale bem a pena. Beijinho
Cláudia: já fui ver a tua surpresa… :D
Adoro Mia Couto, um génio como poucos...obrigada pela partilha*
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