quinta-feira, dezembro 27, 2007

Os amantes sem dinheiro


William A Bouguereau - First Jewels

Tinham o rosto aberto a quem passava.

Tinham lendas e mitos

e frio no coração.

Tinham jardins onde a lua passeava

de mãos dadas com a água

e um anjo de pedra por irmão.


Tinham como toda a gente

o milagre de cada dia

escorrendo pelos telhados;

e olhos de oiro

onde ardiam

os sonhos mais tresmalhados.


Tinham fome e sede como os bichos,

e silêncio

à roda dos seus passos.

Mas a cada gesto que faziam

um pássaro nascia dos seus dedos

e deslumbrado penetrava nos espaços.


Eugénio de Andrade - Os amantes sem dinheiro

sábado, dezembro 08, 2007

Luz

Gustav Klimt - O Abraço

Agarro o sonho com ambas as mãos. Envolvo-me num abraço de pensamentos e imagens. Baixo a cabeça. Encolho-me dentro de mim. Cerro os olhos e vejo. Vejo-te. Beijo-te. Sorriso de Sol. Sorriso de Lua. Quantas são as cores da tua alma, poesia? Cinjo-me a ti com o meu manto de oiro e assim ficamos. Em silêncio. Isolados do mundo. Os dois querendo ser um. Lentamente, em espiral, nos vamos fundindo. E quando, por fim, somos luz, desprendem-se de nós estrelas douradas que se vão juntando no céu. Somos o fluxo radiante. O fulgor da aurora boreal. E, pouco a pouco, no sossego da noite de Outono, estendemos pela cidade adormecida o nosso amor luminoso.

JFDourado – Luz – 08/12/2007


sexta-feira, novembro 16, 2007

Nua

Amadeo Modigliani - La Belle Romaine

Nua és tão simples como uma de tuas mãos,

lisa, terrestre, mínima, redonda, transparente,

tens linhas de lua, caminhos de maçã,

nua és magra como o trigo nu.


Nua és azul como a noite em Cuba,

tens trepadeiras e estrelas no pêlo,

nua és enorme e amarela

como o verão numa igreja de ouro.


Nua és pequena como uma de tuas unhas,

curva, subtil, rosada até que nasça o dia

e te metes no subterrâneo do mundo


como num longo túnel de trajes e trabalhos:

tua claridade se apaga, se veste, se desfolha

e outra vez volta a ser uma mão nua.


Pablo Neruda - Nua

sábado, novembro 10, 2007

Despedida

Gustav Klimt - Acqua Mossa


Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos

quando anunciaste a despedida

e eu que habitara lugares secretos

e me embriagara com os teus gestos

recolhi as palavras vagabundas

como a tempestade que engole os barcos

porque ama os pescadores



Impossível separarmo-nos

agora que gravaste o teu sabor

sobre o súbito

e infinito parto do tempo



Por isso te toco

no grão e na erva

e na poeira da luz clara

a minha mão

reconhece a tua face de sal



E quando o mundo suspira

exausto

e desfila entre mercados e ruas

eu escuto sempre a voz que é tua

e que dos lábios

se desprende e se recolhe



Ali onde se embriagam

os corpos dos amantes

o te ventre aceitou a gota inicial

e um novo habitante

enroscou-se no segredo da tua carne



Nesse lugar

encostámos os nossos lábios

à funda circulação do sangue

porque me amavas

eu acreditava ser todos os homens

comandar o sentido das coisas

afogar poentes

despertar séculos à frente

e desenterrar o céu

para com ele cobrir

os teus seios de neve



Mia Couto – Despedida


terça-feira, outubro 30, 2007

Meio-dia


Vincent Van Gogh - Nude Woman Reclining

Contemplo a mulher adormecida. Ocupa uma metade do terraço, longa e voluptuosamente extensa, constelada de um silêncio que é todo aéreo e ondulante. Em volta o mundo converteu-se num pomar unânime. É um meio-dia interminável. Tudo está imóvel, fixo, como um centro. As superfícies lisas, brancas, sem reflexos, sem sombras. Imperceptível, insondável, é o gesto fulgurante da imobilidade. A intensidade da presença identifica-se com o vazio da ausência. O meu corpo estende o corpo da mulher, enrola-se nas volutas da sua música silenciosa, adere às paisagens brancas do seu sono completo. Imóvel, não procuro palavras, nem as mais leves e transparentes: sinto-me fluído, extremamente aberto. Conheço as sensações da mulher nua: água, terra, fogo e vento. Conheço-a e amo-a através delas, numa relação de felicidade intensa e ao mesmo tempo imponderável. O sono da mulher é de horizontes múltiplos e em si germina o centro abrindo o aberto sem limites.

António Ramos Rosa - Meio-dia


segunda-feira, outubro 15, 2007

Para ti


Anabela Bolotinha - Mulher flor

Foi para ti

que desfolhei a chuva

para ti soltei o perfume da terra

toquei no nada

e para ti foi tudo


Para ti criei todas as palavras

e todas me faltaram

no minuto em que falhei

o sabor do sempre


Para ti dei voz

às minhas mãos

abri os gomos do tempo

assaltei o mundo

e pensei que tudo estava em nós

nesse doce engano

de tudo sermos donos

sem nada termos

simplesmente porque era de noite

e não dormíamos

eu descia em teu peito

para me procurar

e antes que a escuridão

nos cingisse a cintura

ficávamos nos olhos

vivendo de um só olhar

amando de uma só vida


Mia Couto – Para ti

segunda-feira, outubro 08, 2007

Doze moradas do silêncio


Van Gogh - Field of Poppies

Envolver-me na mais obscura solidão das searas e gemer

Amassar com os dentes uma morte íntima

Durante a sonolência balbuciante das papoulas

Prolongar a vida deste verão até ao mais próximo verão

para que os corpos tenham tempo de amadurecer


colher em tuas coxas o sumo espesso

e no calor molhado da noite seduzir as luas

o riso dos jovens pastores desprevenidos...as bocas

do gado triturando o restolho....as correrias inesperadas

das aves rasteiras ....


e crescerei das fecundas terras ou da morte

que sufoca o cio da boca.....

...subirei com a fala ao cimo do teu corpo ausente

transmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes.


Al Berto - Doze moradas do silêncio


sábado, setembro 22, 2007

Como te Amo?


William A Bouguereau - Work Interrupted

Como te amo? Deixa-me contar os modos.

Amo-te ao mais fundo, amplo e alto

Minh'alma pode alcançar, além dos limites visíveis

E fins do Ser e da Graça ideal.


Amo-te até ao nível das mais diárias

E ínfimas necessidades, à luz do sol e das velas.

Amo-te com liberdade, como os homens buscam por Justiça;

Amo-te com pureza, como voltam das Preces.


Amo-te com a paixão posta em uso

Nas minhas velhas mágoas e com a fé da minha infância.

Amo-te com um amor que me parecia perdido


Com meus Santos perdidos - amo-te com o fôlego,

Sorrisos, lágrimas, de toda a minha vida! - e, se Deus quiser,

Amar-te-ei melhor depois da morte.


Elizabeth Barrett Browning - XLIII - Como Te Amo?

sábado, agosto 25, 2007

A Secreta Viagem


Egon Schiele - Embrace

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,

ficámos nós os dois, parados, de mão dada...

Como podem só dois governar um navio?

Melhor é desistir e não fazermos nada!


Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...

Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...

Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...


Aparentes senhores de um barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...

Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado,

se justifica, enflora, a secreta viagem!


Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.

- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!


David Mourão-Ferreira - A Secreta Viagem



sábado, agosto 11, 2007

Granate


Gustav Klimt - Lady with Fan


Ya en tu carne hay ardores meridionales,

y en tu cuerpo magnífico de pantera

una jocunda y cálida primavera

dibuja esplendorosas curvas triunfales.


Amor prende en tus ojos llamas sensuales;

la sangre ya empurpura tu faz de cera

y bajo tu camisa, blanca y ligera,

tus senos incipientes son dos puñales.


Mas yo sé que tus lábios, donde está preso

el beso – esa libélula roja y rara –

no saben del encanto gentil del beso…


Feliz yo si lograra que en ânsia loca

mi ébria boca de sátiro derramara

la dulzura de un beso sobre tu boca!


Nicolás Guillén – Granate


sexta-feira, julho 27, 2007

Não desisti de habitar a arca azul


Amedeo Modigliani - Reclining nude-l

Não desisti de habitar a arca azul

do antiquíssimo sossego do universo.

A minha ascendência é o sol e uma montanha verde

e a lisa ondulação do mar unânime.

Há novecentas mil nebulosas espirais

mas só o teu corpo é um arbusto que sangra

e tem lábios eléctricos e perfuma as paredes.

Aos confins tranquilos entre ilhas mar e montes

vou buscar o veludo e o ouro da nostalgia.

Deponho a minha cabeça frágil sobre as mãos

de uma mulher de onde a chuva jorra pelos poros.

Ó nascente clara e mais ardente do que o sangue,

sorvo o cálice do teu sexo de orquídea incandescente!

A minha vida é uma lenta pulsação

sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol.

Há bois lentos e profundos no meu corpo

de um Outono compacto e negro como um século.

Com simultâneas estrelas nas têmporas e nas mãos

a deusa da noite, sonâmbula, desliza.

Ao rumor da folhagem e da areia

escrevo o teu odor de sangue, a tua livre arquitectura.

Prisioneiro de longínquas raízes

ergo sobre a minha ferida uma torre vertical.

Vislumbro uma luz incompreensível

sobre os campos áridos das semanas.

Elevo o canto profundo do meu corpo

sob o arco das tuas pernas deslumbrantes.

Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões

ou como se tocasse os teus joelhos planetários

ou adormecesse languidamente no teu sexo.


António Ramos Rosa - Não desisti de habitar a arca azul

domingo, junho 24, 2007

Os versos que te fiz


Raphael Santi - Cherubini


Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que a minha boca tem pra te dizer!

São talhados em mármore de Paros

Cinzelados por mim pra te oferecer.


Têm dolência de veludos caros,

São como sedas pálidas a arder...

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que foram feitos pra te endoidecer!


Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...

Que a boca da mulher é sempre linda

Se dentro guarda um verso que não diz!


Amo-te tanto! E nunca te beijei...

E nesse beijo, Amor, que eu te não dei

Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca - Os versos que te fiz

domingo, maio 27, 2007

XXII


Agon Schiele - Reclining Semi-Nude With Red Hat

Quantas vezes, amor, te amei sem te ver e talvez sem me lembrar,

sem reconhecer teu olhar, sem olhar-te, centáurea,

em regiões hostis, num meio-dia ardente:

tu eras só o aroma dos cereais que amo.


Vi-te talvez, imaginei-te ao passar erguendo uma taça

em Angol, à luz da lua de Junho,

ou eras tu a cintura daquela guitarra

que toquei nas trevas e soou como o mar desmedido.


Amei-te sem o saber, e procurei a tua memória.

Nas casas vazias entrei com lanterna para roubar o teu retrato.

Mas eu já sabia como eras. De repente


enquanto ias comigo toquei-te e a minha vida parou:

estavas diante de mim, reinando sobre mim, e ainda reinas.

Como fogueira nos bosques, o fogo é o teu reino.


Pablo Neruda – XXII - Cem sonetos de amor


sexta-feira, maio 11, 2007

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio


James Tissot - Young Woman in a Boat

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)


Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.


Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.


Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.


Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.


Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento -

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.


Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.


E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.


Odes de Ricardo Reis - Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio


quarta-feira, abril 25, 2007

V


William A Bouguereau - Amour a laffut

Que a noite te não toque, nem o ar nem a aurora,

só a terra, a virtude dos cachos,

as maçãs que crescem ouvindo a água pura,

a lama e as resinas do teu país fragrante.


De Quinchamali onde te moldaram os olhos

aos teus pés para mim criados na fronteira

tu és a argila escura que conheço:

nas tuas ancas toco de novo todo o trigo.


Tu não sabias talvez, araucana,

que quando antes de amar-te me esqueci dos teus beijos

o meu coração ficou lembrando a tua boca


E andei como um ferido pelas ruas

até perceber que havia encontrado,

amor, meu território de beijos e vulcões.


Pablo Neruda - V - Cem sonetos de amor

sexta-feira, abril 13, 2007

A Boca as Bocas


Pablo Picasso - The Kiss

Apenas

uma boca. A tua Boca

Apenas outra, a outra tua boca

É Primavera e ri a tua boca

De ser Agosto já na outra boca


Entre uma e outra voga a minha boca

E pouco a pouco a polpa de uma boca

Inda há pouco na popa em minha boca

É já na proa a polpa de outra boca.


Sabe a laranja a casca de uma boca

Sabe a morango a noz da outra boca

Mas sabe entretanto a minha boca


Que apenas vai sentindo em sua boca

Mais rouca do que a boca a minha boca

Mais louca do que a boca a tua boca.


David Mourão-Ferreira - A Boca as Bocas



domingo, abril 01, 2007

Teu corpo principia


William A Bouguereau - The first kiss

Dou-te um nome de água

para que cresças no silêncio.


Invento a alegria

da terra que habito

porque nela moro.


Invento do meu nada

esta pergunta.

(Nesta hora, aqui.)


Descubro esse contrário

que em si mesmo se abre:

ou alegria ou morte.


Silêncio e sol – verdade,

respiração apenas.


Amor, eu sei que vives

num breve país.


Os olhos imagino

e o beijo na cintura,

ó tão delgada.


Se é milagre existires,

Teus pés nas minhas palmas.


Ó maravilha, existo

no mundo dos teus olhos.


Ó vida perfumada

Cantando devagar.


Enleio-me na clara

dança do teu olhar.


Por uma água tão pura

vale a pena viver.


Um teu joelho diz-me

a indizível paz.



António Ramos Rosa - Teu corpo principia

sábado, março 24, 2007

Soneto de amor


Andrew Lipcko - Morning

Não me peças palavras, nem baladas,

Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio,

Deixa cair as pálpebras pesadas,

E entre os seios me apertes sem receio.


Na tua boca sob a minha, ao meio,

Nossas línguas se busquem, desvairadas...

E que os meus flancos nus vibrem no enleio

Das tuas pernas ágeis e delgadas.


E em duas bocas uma língua..., - unidos,

Nós trocaremos beijos e gemidos,

Sentindo o nosso sangue misturar-se.


Depois... - abre os teus olhos, minha amada!

Enterra-os bem nos meus; não digas nada...

Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!


José Régio - Soneto de amor



sábado, março 17, 2007

Preciso de palavras, de amor


Gustav Klimt - The kiss

Preciso de palavras, de amor. Tuas. Para mim. Palavras que sentem. Olhos que procuram. Os meus. Palavras onde transparece o desejo a corpos despidos. A metamorfose no uno. Palavras que confessam. Mãos frias. As tuas. Sem as minhas. Palavras que contam. Já não vou aos croissants quentes na Foz. Sem ti deixaram de ser doces e fofos. Palavras que relembram. Serralves. O perfume do jardim das aromáticas. Dois enlaçados num só corpo. O primeiro beijo, no banco de madeira junto ao lago. Olhos cerrados. Os meus. Um sorriso. Teu. Queria guardar para sempre o sabor dos teus lábios. Palavras tristes. Saudade. Os poemas que sussurrei ao teu ouvido. O nosso olhar cúmplice, de mãos dadas debaixo da mesa. A poesia num rosto. O teu. Um riso sereno. Meu. Preciso de palavras, de amor. Tuas. Para mim.

JFDourado - Preciso de palavras, de amor – 17/03/2007


terça-feira, março 06, 2007

Vertentes


Uriy Kakichev - The Sun in the Grass

As palavras esperam o sono

e a música do sangue sobre as pedras corre

a primeira treva surge

o primeiro não a primeira quebra


A terra em teus braços é grande

o teu centro desenvolve-se como um ouvido

a noite cresce uma estrela vive

uma respiração na sombra o calor das árvores


Há um olhar que entra pelas paredes da terra

sem lâmpadas cresce esta luz de sombra

começo a entender o silêncio sem tempo

a torre estática que se alarga


A plenitude animal é o interior de uma boca

um grande orvalho puro como um olhar

Deslizo no teu dorso sou a mão do teu seio

sou o teu lábio e a coxa da tua coxa

sou nos teus dedos toda a redondez do meu corpo

sou a sombra que conhece a luz que a submerge


a luz que sobe entre

as gargantas agrestes

deste cair na treva

abre as vertentes onde

a água cai sem tempo


António Ramos Rosa – Vertentes


domingo, fevereiro 25, 2007

Tentei fugir


Uriy Kakichev - Eve


Tentei fugir da mancha mais escura

que existe no teu corpo, e desisti.

Era pior que a morte o que antevi:

era a dor de ficar sem sepultura.


Bebi entre os teus flancos a loucura

de não poder viver longe de ti:

és a sombra da casa onde nasci,

és a noite que à noite me procura.


Só por dentro de ti há corredores

e em quartos interiores o cheiro a fruta

que veste de frescura a escuridão...


Só por dentro de ti rebentam flores.

Só por dentro de ti a noite escuta

o que me sai, sem voz, do coração.


David Mourão-Ferreira - Tentei Fugir



sábado, fevereiro 17, 2007

No Fundo Aberto



Auguste Renoir - Irene


Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso

como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha.
Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho,
sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores.
Estamos na aurícula do coração do mundo.
O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra.
Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar
e é a felicidade da língua vegetal
ou a cabeça leve que se inclina para o oriente.
Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue
e um harmonioso astro se eleva como uma espádua fulgurante
enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os lábios.

António Ramos Rosa - No Fundo Aberto




sábado, fevereiro 10, 2007

Desce em folhedos tenros a colina


John William Waterhouse - Windflowers


Desce em folhedos tenros a colina:

- Em glaucos, frouxos tons adormecidos,

Que saram, frescos, meus olhos ardidos,

Nos quais a chama do furor declina...


Oh vem, de branco, - do imo da folhagem!

Os ramos, leve, a tua mão aparte.

Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,

Reflectir-te virgem a serena imagem.


De silva doida uma haste esquiva

Quão delicada te osculou n'um dedo

Com um aljofar cor de rosa viva!...


Ligeira a saia... Doce brisa, impele-a.

Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo!

Alma de silfo, carne de camélia...


Camilo Pessanha - Desce em folhedos tenros a colina

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Nocturno


Amedeo Modigliani - Caryatid


O desenho

redondo do teu seio

Tornava-te mais cálida, mais nua

Quando eu pensava nele...Imaginei-o,

À beira-mar, de noite, havendo lua...


Talvez a espuma, vindo, conseguisse

Ornar-te o busto de uma renda leve

E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,

Em ti, a branca irmã que nunca teve...


Pelo que no teu colo há de suspenso,

Te supunham as ondas uma delas...

Todo o teu corpo, iluminado, tenso,

Era um convite lúcido às estrelas....


Imaginei-te assim á beira-mar,

Só porque o nosso quarto era tão estreito...

- E, sonolento, deixo-me afogar

No desenho redondo do teu peito...


David Mourão-Ferreira - Nocturno

domingo, janeiro 28, 2007

Me gustas cuando callas

William A Bouguereau - Seated Nude


Me gustas cuando callas porque estas como ausente,
y me oyes desde lejos y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.
Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mia.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolia.
Me gustas cuando callas y estas como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
Déjame que me calle con el silencio tuyo.
Déjame que te hable también com tu silencio
claro como una lámpara,
simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de una estrella,
tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda - Me gustas cuando callas

sábado, janeiro 20, 2007

Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas


Pierre Puvis de Chavannes - The Detail Imagination


Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas

E perfuma-as com o odor da sua lenta vulva

Ela tanto pode ser uma fêmea da lua com uma rapariga solar

Nas suas ancas ondula um indolente Outono e nos seus seios desponta a primavera.


Eu vejo-a e não a vejo na brancura da página

porque ela flutua vagamente na distância como uma lua no meio-dia

Mares bosques clareiras fontes em delicadas e delgadas linhas

Flúem com o fulgor dessa mulher azul

As palavras caminham com o ritmo fresco dos seus pés descalços

Sobre uma praia fulva de conchinhas brancas

O seu hálito doce embriaga as leves sílabas

E a doçura do seu lábio impregna as frases nuas

Ela é a presença ausente corpo de aragem viva

E a sua felicidade é tão vaga como vaga a sua longínqua imagem


António Ramos Rosa - Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas

sábado, janeiro 06, 2007

O Pastor Amoroso


Girl with a Pearl Earring - Jan Vermeer


Quando eu não te tinha

Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo...

Agora amo a Natureza

Como um monge calmo à Virgem Maria,

Religiosamente, a meu modo, como dantes,

Mas de outra maneira mais comovida e próxima...

Vejo melhor os rios quando vou contigo

Pelos campos até à beira dos rios;

Sentado a teu lado reparando nas nuvens

Reparo nelas melhor —

Tu não me tiraste a Natureza...

Tu mudaste a Natureza...

Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,

Por tu existires, vejo-a melhor, mas a mesma,

Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,

Por tu me escolheres para te ter e te amar,

Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente

Sobre todas as coisas.

Não me arrependo do que fui outrora

Porque ainda o sou.


Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,

E vendo-a sempre de maneiras diferente do que a encontro a ela,

Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,

E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.

Amar é pensar.

E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.

Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.

Tenho uma grande distracção animada.

Quando desejo encontrá-la

Quase que prefiro não a encontrar,

Para não ter que a deixar depois.

Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só

Pensar nela.

Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.


in "O Pastor Amoroso" - Alberto Caeiro