segunda-feira, dezembro 08, 2008
Catarina ou o sabor da maçã
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A gente, às vezes, acordava de noite e conversávamos. Na noite de Sábado para Domingo acordámos às seis e meia da manhã. Ela disse que lhe apetecia fazer uma coisa fora de propósito. Eu propus irmos ver nascer o Sol ao alto da Peninha e ela achou óptimo. Vestimo-nos à pressa. Eu enfiei por cima de tudo uma camisola grossa de lã, metemo-nos no carro e lá fomos pela serra acima. A luz do dia começava a distinguir o contorno dos montes mas quando lá chegámos acima o sol não tinha nascido ainda, Ficámos no carro, à espera, de mão dada até que ela se aproximou mais de mim e me deu dois daqueles beijos que ela sabia e de que eu estava a tomar o gosto. A certa altura lá vinha o Sol a espreitar no fundo do horizonte. Perto, nem viv’alma. Nem um cão ladrava. Era só o pequeno coro dos pássaros a acordarem-se uns aos outros. O belo disco de luz alaranjada ia-se erguendo e nós ficámos a olhar para o Sol e para os raios que ele ia pondo na encosta da serra. Ficámos quietos e silenciosos como numa missa e aquele ritual diário, mas que a gente raras vezes tinha ocasião de ver, transmitia-nos uma grande serenidade e uma imensa emoção. Senti a mão dela a apertar mais a minha. Ela disse:
- O mundo é tão bonito!
Eu comentei:
- O que faz isto bonito está dentro de nós. Muita gente fica indiferente a este Sol a nascer e quem tem ódio no coração fica lá com o ódio.
A Catarina estava com um brilho no olhar e parecia querer aspirar com as narinas tudo o que se estava a passar. Deixou cair uma frase como se fosse uma resposta ao que eu lhe tinha dito:
- Talvez fosse possível ensinar as pessoas a ver nascer o Sol…
Eu perguntei:
- E a ti, quem te ensinou?
- Tudo me ensinou: o meu pai. A minha mãe, o mundo em que eu nasci… Tudo mais ou menos me preparou para coisas destas. Viver é capaz de ser uma educação de sentimentos.
- Sim. É capaz de ser, só que nós temos uma imensa capacidade de sermos infiéis às coisas para que somos feitos.
O Sol tinha acabado de nascer e o dia prometia estar bonito. Viemos para o carro e descemos a Colares para a nossa casa. Fomos dormir mas, de cada vez que a gente entrava na cama, a Catarina tinha que fazer os seus rituais de carícias que sempre acabavam num amor bem soletrado. Como tenho dito, todo este lado sensual da Catarina era uma surpresa para mim. Naquele dia acabámos por cair um para cada lado, sonolentos e cansados, mas quase parecia que, entre o sono, ela pensava no meu corpo e procurava-o com as mãos, mesmo a dormitar.
Quando acordei, o Sol que tínhamos visto nascer, já ia alto e forte. Batia nas janelas e as frinchas deixavam passar pequenos raios de luz que iam bater no chão e na cómoda. Ela continuava a dormir ao meu lado e a mim deu-me para pensar nesta aventura inesperada que completamente me enchia. Gostaria de explicar que, para mim, há uma diferença entre o estar apaixonado e o viver com intensidade uma vibração amorosa. A paixão é cega e o apaixonado não consegue aperceber-se da realidade em que está metido. Eu estava lúcido, até porque a tal outra metade de mim não parava de nos observar e reflectir. Mas a verdade é que eu me sentia preso à Catarina com uma intensidade que não contava já ser capaz de viver e os meus quarenta e muitos anos estavam a desvendar-me forças e estados de alma que eu já não esperava viver.
Levantei-me, desci para a cozinha, tomei o pequeno-almoço e fiz o que se faz nestas ocasiões: preparei café e torradas, pus tudo num tabuleiro e fui levar-lho ao quarto. Ela já estava acordada e riu-se para mim, agradecida. Eu disse:
- Trago-lhe o café e as torradas. Acho que todos os namorados fazem esta rábula nos primeiros dias… É uma espécie de costumes e hábitos dos humanos quando se amam…
-São bem bons estes costumes dos nativos – disse ela, sentando-se na cama. Ficava bem assim, despenteada com o peito a sair dos lençóis. Até a comer a torrada a boca ficava sensual e provocante e eu olhava-a com a sensação de que aquela mulher não tinha nada que ver com a menina que conheci e com quem eu tinha aquelas conversas sobre literatura e estados de alma.
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in "Catarina ou o sabor da maçã" - António Alçada Baptista
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4 comentários:
:)
o homem parte, a obra fica...
Um grande escritor, a quem a morte vai condenar a um duplo esquecimento, numa país amnésico.
Talvez não. Vamos ser optimistas e pensar que haverá sempre alguns que não o vão deixar cair no esquecimento :)
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