sábado, junho 28, 2008
XXXV
A tua mão voou dos meus olhos para o dia.
A luz entrou como uma roseira florida.
Areia e céu palpitavam como uma
culminante colmeia cortada nas turquesas.
A tua mão tocou sílabas que tilintavam, taças,
galhetas com azeite amarelo,
corolas, fontes e, sobretudo, amor,
amor: a tua mão pura poupou as colheres.
A tarde foi-se. Secretamente a noite deslizou
sobre o sono dos homens sua cápsula celeste.
A madressilva soltou um triste aroma selvagem.
E a tua mão voltou voando do seu voo
a fechar suas penas que julguei perdidas
sobre os meus olhos devorados pela sombra.
Pablo Neruda – Cem sonetos de amor - XXXV
sexta-feira, junho 20, 2008
A terceira rosa
Somos dois piratas nos mares do sul, navegamos por dentro um do outro, amanhã partirei para outro mar, amanhã estarás em outra ilha, não é possível tanto azul, tanta tensão, tanta pressão dentro de nós. O fio vai partir-se, por instinto o sabemos, os que se amam vão morrer, tu própria o dizes, pela primeira vez o dizes: Não quero morrer de ti.
Desde sempre, diz Rosário, minha mãe. Desde sempre. Nos astros, nas mãos, dentro, no centro. Uma força nos impele um para o outro, acaso, correntes mágicas, uma força nos funde e nos divide. Não é possível tanta lua, tanta maré, tanta alquimia. Ou eu hei-de ser tu ou tu hás-de ser eu, morreremos de não podermos ser só um, isso o sabemos, isso nos dói. Por isso as mãos se torcem, as bocas se mordem, os corpos se querem e se temem.
- Nunca se viu, diz uma voz atrás de nós.
Outros nenhuns. Nunca mais.
O Gavião dos Sete Mares acaba de zarpar, somos dois piratas desamparados na sala do cinema onde as luzes acabam de acender-se, ainda estamos de dedos entrelaçados, há olhos que nos fixam e nos matam, mas nós somos de outro azul, nós somos de outro mar, o mesmo vento nos impele, a mesma força nos une e nos separa.
in “A terceira rosa” – Manuel Alegre
terça-feira, junho 10, 2008
Alma
…Mas era ali, na Igreja, ao fim do dia, com a luz coada pelos vitrais, as imagens da Virgem e do Senhor dos Passos, os quadros da Paixão, era ali, recitado em coro, que o Padre-nosso parecia música. Sobretudo quando em mim se fixavam os olhos azuis de Maria do Ó, filha de um sargento que frequentava a Escola Central, instalada no quartel da vila por influência de meu avô Geraldo Pais, no tempo da Primeira República.
Ela era de Portimão e eu, propenso já ao romantismo, ao devaneio, senão mesmo ao desvario, pensava: moira encantada. Não sei se pelo nome, se pelo azul dos olhos, que era para mim a cor do sul, o certo é que ela me inspirou, não direi a primeira paixão, que só depois viria a saber o que era, mas o primeiro encantamento.
Mandava-lhe bilhetinhos pela minha irmã, ela respondia com outros, às vezes só com risinhos e olhos meigos, ao fim da tarde, sentada na Igreja, durante o catecismo. Às tantas já ninguém prestava atenção à catequista: olhavam ora para ela ora para mim, havia risinhos das raparigas, os rapazes faziam-lhes caretas, Nicolau, no meio da ladainha, começava a dizer baixinho, ao mesmo ritmo: A Maria do Ó só olha pró Duarte, a Maria do Ó só olha pró Duarte.
Às vezes eu respondia-lhe com uma canelada, ele não se ficava e lá vinha o Padre Aníbal, com a batina abotoada de alto a baixo e as botas a ranger, repor a ordem nas aulas de catecismo.
Uma tarde sentei-me com ela nos degraus do Cruzeiro, contei-lhe que os namorados ciganos faziam juramentos de sangue e perguntei-lhe se ela não queria fazer um comigo. Ela acenou que sim, muito corada, e o meu coração bateu descompassadamente…
in “Alma” – Manuel Alegre
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