domingo, dezembro 20, 2009

Feliz Natal!!!


Feliz Natal - Jorge Dourado


Desejo-vos um...

FELIZ NATAL!!! :)



NATAL

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

Natal - Manuel Alegre



sábado, dezembro 05, 2009

Vinte e zinco


Oxpecker Head - Theresa Ruth Eichler


Castro olha de si para si: suas pernas estão todas conspurcadas, o matope lhe engomando os movimentos. Pela primeira vez, ele está sujo da mesma matéria com que Irene se manchava. Essa lama que lhe chapeava as pernas, numa pasta cinzenta ao jeito dos elefantes. Parecia envergar África, besuntado dos seus fluidos mais viscerais. Lhe ocorre a lembrança de uma tarde em que o vieram chamar para dar destino a um búfalo que se atolara nos pântanos. O jipe derrapou pelo chão amolecido dos tandos. Súbito, entre as palmeiras lalas, lhe surge a besta, meio afundada na lama. Os cascos pisavam subterrâneas nuvens e as pernas já perdiam função. O bicho dava pena: sob o til da cornadura, os olhos vermelhos como se a terra já assomasse em seu olhar, parecia se descobrir subitamente mortal. Impotente prisioneiro dessa mentira que é haver chão em toda a terra.
O que mais marcou o português não foi a visão desse lento naufrágio. Mas foi o pássaro carraceiro, mais seu bico vermelho. Já o búfalo submergia, inevitável, e a ave ainda se conservava de pouso em seu dorso. Fosse ele o comandante que afundasse junto com o navio.
A lembrança do búfalo lhe chegava agora, como se tudo pesasse e a ave que pousa na curva do horizonte fosse a pique com o mundo. Lhe doía esse simples ensinamento: tudo é terminável, até o futuro.


in “Vinte e zinco” – Mia Couto