sexta-feira, dezembro 21, 2012

O filho de mil homens

Marc Chagall

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Puseram-se de luz, como se caíssem de um candeeiro.
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in "O filho de mil homens" - Valter Hugo Mãe - Página 247

sexta-feira, maio 20, 2011

Sputnik, meu amor


Triton and a Nereid - Arnold Böcklin


Por que será que estamos condenados a ser assim tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Porquê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?
Virei-me de costas sobre a laje de pedra, fitei o céu por cima de mim e pus-me a pensar na quantidade imensa de satélites que naquele preciso momento deviam girar à volta da Terra. No fio do horizonte era ainda possível distinguir uma réstia de luz, e as estrelas começavam a brilhar no céu de um profundo tom púrpura. Procurei com o olhar a luz de um satélite, mas havia demasiada claridade para distinguir fosse o que fosse a olho nu. As estrelas que estavam à vista permaneciam imóveis, cada uma no seu sítio, como se cravadas no céu. Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do Sputnik que continuavam a dar voltas à Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade. Solitários pedaços de metal que se encontram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.


in “Sputnik, meu amor” - Haruki Murakami - Página 200

quarta-feira, março 16, 2011

A Relíquia


Jacqueline with Flowers - Pablo Picasso


Não resisti: descalço, em ceroulas, saí ao corredor adormecido; e cravei à fechadura da sua porta um olho tão esbugalhado, tão ardente – que quase receava feri-la com a devorante chama do seu raio sanguíneo… Enxerguei num círculo de claridade uma toalha caída na esteira, um roupão vermelho, uma nesga do alvo cortinado do seu leito. E assim agachado, com bagas de suor no pescoço, esperava que ela atravessasse, nua e esplêndida, esse disco escasso de luz – quando senti de repente, por trás, uma porta ranger, um clarão banhar a parede. Era o barbaças, em mangas de camisa, com o seu castiçal na mão! E eu, misérrimo Raposo, não podia escapar. De um lado, estava ele, enorme. Do outro, o topo do corredor, maciço.
Vagarosamente, calado, com método, o hércules pousou a vela no chão, ergueu a sua rude bota de duas solas, e desmantelou-me as ilhargas… Eu rugi: «Bruto!» Ele ciciou: «Silêncio!» E outra vez, tendo-me ali cercado contra o muro, a sua bota bestial e de bronze me malhou tremendamente quadris, nádegas, canelas, a minha carne toda, bem cuidada e preciosa! Depois, tranquilamente, apanhou o seu castiçal. Então eu, lívido, em ceroulas, disse-lhe com imensa dignidade:
- Sabe o que lhe vale, seu bife? É estarmos aqui ao pé do túmulo do Senhor, e eu não querer escândalos por causa da minha tia… Mas se estivéssemos em Lisboa, fora de portas, num sítio que eu cá sei, comia-lhe os fígados! Nem você sabe do que se livrou. Vá com esta, comia-lhe os fígados!
E muito digno, coxeando, voltei ao quarto a fazer pacientes fricções de arnica. Assim eu passei a minha primeira noite em Sião.


in “A Relíquia” – Eça de Queirós – Páginas 99 e 100


sexta-feira, fevereiro 04, 2011

Correntes d'Escritas 2011



As Correntes d'Escritas estão de volta à Póvoa de Varzim!


Programa aqui.

Página oficial aqui.

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Boas Festas!!!


Boas Festas - Jorge Dourado ;)

sábado, setembro 18, 2010

A viagem do elefante


Faun Whistling to a Blackbird - Arnold Böcklin


Escarranchado na nuca do elefante, com o saco entre as pernas, vestido agora com a sua suja indumentária de trabalho, observava com soberba de vencedor a gente que o olhava de queixo caído, sinal absoluto de pasmo segundo se diz, mas que, em verdade, talvez por absoluto ser, nunca pôde ser observado na vida real. Quando montava o Salomão, a subhro sempre lhe havia parecido que o mundo era pequeno, mas hoje, no cais do porto de Génova, alvo dos olhares de centenas de pessoas literalmente embevecidas pelo espectáculo que lhes estava sendo oferecido, quer com a sua própria pessoa quer com o animal em todos os aspectos tão desmedido que obedecia às suas ordens, fritz contemplava com uma espécie de desdém a multidão, e, num insólito instante de lucidez e relativização, pensou que, bem vistas as coisas, um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante.


in “A viagem do elefante” – José Saramago – páginas 178 e 179



sábado, julho 17, 2010

Memórias das minhas putas tristes


Women with a parrot - Eugène Delacroix


Nos meus doze anos, ainda de calças curtas e botinhas da escola primária, não pude resistir à tentação de conhecer os andares superiores enquanto o meu pai se debatia numa das suas reuniões intermináveis, e deparei com um espectáculo celestial. As mulheres que malvendiam os seus corpos até ao amanhecer moviam-se pela casa desde as onze da manhã, quando já a canícula do vitral era insuportável, e tinham que fazer a sua vida doméstica andando em pelota por toda a casa enquanto comentavam aos gritos as suas aventuras da noite. Fiquei aterrorizado. A única coisa que me ocorreu foi escapar por onde tinha vindo, quando uma das despidas de carnes maciças cheirando a sabão barato me abraçou pelas costas e me levou pelo ar até ao seu cubículo de cartão sem que eu a pudesse ver no meio da gritaria e dos aplausos das inquilinas em pêlo. Atirou-me de barriga para cima na sua cama para quatro, tirou-me as calças com uma manobra de mestre e encavalitou-se em cima de mim, mas o terror gelado que me ensopava o corpo impediu-me de a receber como um homem. Naquela noite, acordado na cama da minha casa pela vergonha do assalto, não consegui dormir mais de uma hora com as ânsias de a voltar a ver. Mas na manhã seguinte, enquanto os noctívagos dormiam, subi a tremer até ao seu cubículo e acordei-a a chorar aos gritos, com um amor enlouquecido que durou até que o levou sem piedade a ventania da vida real. Chamava-se Castorina e era a rainha da casa.


in “Memórias das minhas putas tristes” – Gabriel García Márquez - páginas 109 e 110