segunda-feira, setembro 28, 2009

As palavras


Hip hip hurra! - Peter Severin Kroyer


São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

As palavras - Eugénio de Andrade



Hoje as palavras são todas para mim... afinal é o meu dia... ;)

sexta-feira, setembro 18, 2009

Barroco Tropical


Dog's Head by a Red Tree - Edvard Munch


Desliguei a chorar e adormeci. Na manhã seguinte acordei (acordaram-me) e quando me olhei ao espelho vi uma mulher morta de olhos pousados nos meus. A cabeça latejava-me de dor. Não fosse a dor e eu seria inteiramente aquela mulher morta. Há momentos em que só a dor nos prende à vida. Entrei na banheira, girei a torneira do chuveiro, o mais quente possível, e chorei muito tempo debaixo da água. Para chorar não há como debaixo da água. O ideal é à chuva, mas apenas resulta quando chove muito, e tem de ser num país tropical, bátegas tépidas, grossas e pesadas, dessas que limpam tudo. Se não estiver a chover na altura em que vem o choro, e quase nunca está, então o melhor que uma mulher pode fazer é procurar um bom chuveiro. Chorei com pena de mim, assombrada pelo vazio que encontrei na minha alma. Chorei por não saber onde estava. Troquei a vida pelos palcos. Achei que podia fugir do amor. Enganei-me. O amor é um cão velho e tinhoso, porém obstinado, que nunca desiste. Abandonamo-lo no mato, para morrer de fome e de sede, para morrer de frio, porque queremos que morra, e dias depois ele está de regresso a casa, a abanar a cauda. Enxotamo-lo à pedrada, mas volta sempre.


in “Barroco Tropical” – José Eduardo Agualusa

segunda-feira, setembro 07, 2009

O jogador da bola


Playing Soccer - Eileen Downes

O jogo caminha para o fim mas a fé do público presente nas bancadas mantém-se. Todos acreditam que o momento especial da noite ainda vai acontecer. Aquela jogada de antologia que depois será narrada ao longo da semana, vezes sem conta, nas tertúlias dos cafés. Anseia-se pela descarga sincronizada e colectiva de adrenalina. Algo só possível numa dessas ocasiões onde milhares de pessoas se unem numa mesma paixão. O futebol no seu estado puro.
Dourado é o jogador de quem se fala. É o fenómeno. O novo Messias que desceu à terra. Os homens gabam-lhe a técnica apurada e a capacidade de remate. As mulheres gabam-lhe… ora bem, as mulheres gabam-lhe muitas coisas, inclusive a técnica e o remate…
E é então que Dourado recebe a bola, dominando-a com o seu famoso e temível pé esquerdo. De imediato escuta-se um bruá vindo das bancadas seguido de silêncio absoluto. Está descaído sobre a esquerda, bem junto ao vértice da área. Parte no um para um. Simula que vai para o lado esquerdo mas inflecte para o centro levantando o esférico num subtil pingo escapando assim à tentativa desesperada do adversário de cortar a jogada. Dá mais um pequeno toque na bola e, já solto, arma a culatra e aplica com o seu pé direito um remate seco e rasteiro. É um disparo indefensável! A bola anicha-se nas redes que estremecem tal a violência do remate. E soltasse um grito colectivo e animalesco que rompe com o silêncio de igreja. Gooooooooolo!!! A multidão, ululante e histérica, põem-se aos saltos fazendo abanar todo o estádio. Abraços e beijos. Sorrisos de orelha a orelha. Os cachecóis azuis e brancos rodopiam nas mãos dos adeptos. As bandeiras da claque são desfraldadas ao vento. Dourado corre para a bandeirinha de canto. Lança-se de joelhos, com a cabeça inclinada para o céu e braços abertos, acolhendo aqueles clamores loucos que ecoam por todo o lado. Leva a mão à camisola, agarra no emblema e beija-o uma, duas vezes. DOURADO, DOURADO, DOURADO… todos cantam sem cessar o nome do seu herói.
Por fim, já no centro do terreno, ele levanta os braços e com os dois indicadores em riste aponta para o público dando uma volta completa. As pessoas aplaudem o gesto e todo o estádio começa a fazer vénias ao mesmo tempo que se escuta o seu nome.
E, nos olhos brilhantes e húmidos do jogador da bola, percebemos que, naquele momento, ele é a pessoa mais feliz do mundo.

O jogador da bola – Jorge Dourado