sábado, maio 23, 2009

A sombra do vento

Blue Nude - Henri Matisse


O homem mais sábio que alguma vez conheci, Fermín Romero Torres, tinha-me explicado numa ocasião que não existia na vida experiência comparável com a da primeira vez que se despe uma mulher. Sábio como era, não me tinha mentido, mas tão-pouco me contara toda a verdade. Nada me tinha dito daquele estranho tremelique das mãos que convertia cada botão, cada fecho éclair, em tarefa de titãs. Nada me tinha dito daquele feitiço de pele pálida e trémula, daquele primeiro roçagar de lábios nem daquela miragem que parecia arder em cada poro de pele. Nada me contara de tudo aquilo porque sabia que o milagre só sucedia uma vez e que, ao suceder, falava uma língua de segredos que, mal se desvendavam, fugiam para sempre. Mil vezes quis recuperar aquela primeira tarde no casarão da Avenida del Tibidabo com Bea em que o rumor da chuva arrebatou o mundo. Mil vezes quis regressar e perder-me numa recordação da qual apenas consigo recuperar uma imagem roubada ao calor das chamas. Bea, nua e reluzente de chuva, deitada junto ao fogo, aberta num olhar que me perseguiu desde então. Inclinei-me sobre ela e percorri a pele do seu ventre com a ponta dos dedos. Bea deixou descair as pálpebras, os olhos, e sorriu-me, segura e forte.
- Faz-me o que quiseres – sussurrou.
Tinha dezassete anos e a vida nos lábios.


in “A sombra do vento” – Carlos Ruiz Zafón

Andrew Bird - Masterswarm



Terça-feira - 26 de Maio - 22h00 - Theatro Circo - Braga

Grande concerto! E eu não vou faltar!!! :)

sábado, maio 16, 2009

Antony and the Johnsons - Soft Black Stars



Little children snuggle under soft black stars
And if you look into their eyes soft black stars
Deliver them from the book and the letter and the word
And let them read the silence bathed in soft black stars
Let them trace the raindrops under soft black stars
Let them follow whispers and scare away the night
Let them kiss the featherbreath of soft black stars
And let them ride their horses licked by the wind and the snow
And tip-toe into twilight where we all one day will go
Caressed with tenderness and with no fear at all
Their faces shining river gold brushed by soft black stars
And angels' wings shall soothe their cares
And all the birds shall sing at dawn
Blessed and wet with joy
You and i will meet one day
Under the night sky lit by soft black stars


...e é já logo à noite!!! :)

sábado, maio 09, 2009

A lâmpada de Aladino


Gypsy - kees van Dongen


Nessa noite o Turco montou a sua tenda à entrada de um bosque de coihues e araucárias. O ar cheirava a madeira e a mar. Fumando o seu cachimbo fez um inventário dos seus bens, disse para consigo que o dia não tinha sido mau e meteu-se debaixo da grossa manta castelhana, disposto a dormir em paz.
Preparava-se para apagar com um sopro o candeeiro de latão quando a mulher Kawésqar irrompeu na tenda.
- Laáks – disse em jeito de cumprimento, apontando para a manta escura e espessa que o cobria.
- Não, não laáks, não está à venda – respondeu o Turco. A Kawésqar olhou-o nos olhos, sorriu ao ver que neles se reflectia duas vezes a pequena chama da lâmpada e, com um movimento enérgico, tirou a túnica de pele que lhe cobria o corpo esbelto de navegante e caçadora. Era uma mulher Kawésqar, a origem do fogo que consome os homens.
O Turco observou aquele corpo esbelto, as coxas firmes, as ancas suportadas pela mais forte mastreação, o ventre plano e os seios destinados a amamentar os melhores filhos do mar.
Durante horas amou-a entre gemidos, embates e derrotas. Em cima dela sentiu-se a bordo do navio mais seguro e ela, montada nele, era a mais graciosa das amazonas.
Ao amanhecer, o Turco levou uma mão ao peito e disse que se chamava Aladino. Vamos lá ver, diz o meu nome, Aladino, pediu-lhe, mas a Kawésqar respondeu com palavras, sons duros como os recifes da ilha Wellington.
Laáks? – perguntou a mulher abraçada à manta castelhana.
- Sim, laáks, é tua – respondeu, acariciando o cabelo negro da mulher que caía até às nádegas e se unia à escuridão da manta.
A mulher apontou para si própria, com um dedo entre os seios.
- Sim, laáks de Aladino agora é tua, agora é laáks de como quer que te chames.
A Kawésqar estava de joelhos, acariciava a manta, levava-a até à cara e sorria satisfeita. A chama fraca da lâmpada banhava-lhe o corpo de mel. O Turco viu-a levantar-se, cobrir-se novamente com a túnica de peles de guanaco, fazer um rolo com a manta castelhana até os seus olhos pousarem na lâmpada.
- Também é tua, é justo. Chama-se lâmpada e funciona assim, anda cá para te ensinar, aqui pões gordura ou óleo, deixas que a mecha saia pelo bico e acendes. Toma, é tua.
- Lâmpada de Aladino – ciciou a mulher Kawésqar, agarrando-a como se fosse o mais delicado dos objectos.
- Sim, é a lâmpada de Aladino – confirmou o Turco, e saiu da tenda para encher os pulmões do ar perfumado dos bosques e dos mares austrais.


in “A lâmpada de Aladino” – Luis Sepúlveda


domingo, maio 03, 2009

XCIII


The Kiss - Annouchka Brochet

Se alguma vez o teu peito parar,
Se algo deixar de arder nas tuas veias,
Se na tua boca a voz morrer sem ser palavra,
Se as tuas mãos se esquecerem de voar e adormecerem,

Matilde, amor, deixa teus lábios entreabertos
Porque esse último beijo deve continuar comigo,
Deve ficar imóvel na tua boca para sempre
Para que assim na minha morte me acompanhe também.

Morrerei beijando a tua boca fria,
Abraçando o cacho perdido do teu corpo,
E procurando a luz dos teus olhos fechados.

E assim, quando a terra receber nosso abraço,
Iremos confundidos numa única morte
Viver para sempre a eternidade de um beijo.

XCIII – Cem Sonetos de Amor – Pablo Neruda